Correio da Bahia

Uma cidade explorada

Há 12 anos, moradores partem de São Domingo, terra natal de empresário acusado de submeter trabalhado­res à ‘escravidão moderna’ em vinícolas

- Fernanda Santana texto fernanda.lima@ redebahia.com.br

Chegada a maioridade, um morador pobre e desemprega­do de São Domingos, no Nordeste baiano, enxerga dois caminhos: permanecer na cidade, empregado no comércio, prefeitura e roçado, ou ir embora. Quando a segunda opção é a escolhida, o nome de um conterrâne­o surge – Pedro Augusto de Oliveira Santana.

Durante pelo menos 12 anos, Pedro Augusto levou gente de São Domingos para trabalhar em latifúndio­s no Mato Grosso e também avícolas e vinícolas no Rio Grande do Sul. O empresário é acusado de submeter mais de 200 trabalhado­res a condições análogas à escravidão na Serra Gaúcha.

Na terra natal de Pedro, onde é conhecido por “filho de Dona Abelita”, a notícia das infrações trabalhist­as cometidas pela empresa dele não chegou a surpreende­r - eram conhecidas. Quem não viveu trama parecida, conhece quem sim.

“Muitas pessoas sabem como é, mas as pessoas aqui, muita gente, não têm renda, e vão. Fizeram como eu”, conta uma das vítimas.

A rede de atuação do empresário envolveu, em mais de uma década, intermediá­rios que recrutavam, nos interiores e em Salvador, profission­ais interessad­os em trabalhos temporário­s no oeste e sul do país.

O esquema de prestação de serviços terceiriza­dos beneficiou diretament­e, neste início de ano, três grandes vinícolas brasileira­s: Salton, Aurora e Garibaldi.

O ciclo do que seriam três meses bem-sucedidos rompeu no dia 22 de fevereiro - ao longo da última semana, novas denúncias surgiram. De um alojamento na gaúcha Bento Gonçalves, fugiram três trabalhado­res para denunciar em um posto da Polícia Rodoviária Federal como eram tratados na lida da colheita de uva.

O Ministério do Trabalho e Emprego caracteriz­ou a condição dos 207 homens encontrado­s depois da denúncia como “análogas à escravidão”, quando a pessoa é exposta a trabalhos forçados e jornadas exaustiva, condições degradante­s e tem a locomoção restringid­a.

Desde janeiro, trabalhado­res foram agredidos por supervisor­es, trabalhara­m sob chuva ou sem descanso, comeram comida estragada, viveram, enfim, o horror do que é chamado escravidão moderna. O que acontecia a 3 mil km era, em São Domingos, uma ferida aberta.

A CIDADE

Até 1982, São Domingos não era uma cidade. Por isso, Pedro foi registrado em Valente, município ao qual o então distrito pertencia. A mudança de status não significa prosperida­de.

Em São Domingos, onde vivem 9 mil pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE), “vai para Feira [de Santana], para longe ou se obriga a trabalhar no campo”, perfila um jovem que, sondado para ir a Bento Gonçalves, preferiu não ir.

O rendimento mensal médio das famílias locais é de R$ 1,5 mil e a proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 8% em 2020.

A dinâmica social do município é a de um interior de pequeno porte, onde famílias se reconhecem por gerações e os exemplos de nativos que alcançam o sucesso são conhecidos. Era o caso de Pedro.

Não é o empresário quem fazia a recruta dos trabalhos. Esse papel é exercido por diferentes pessoas anualmente: elas sondam, por meio de chamados

dade. Talvez seja até pior se obrigar a uma situação que você sabe como será”, contextual­iza Filgueiras, também coordenado­r do projeto Vida Pós-resgate que, em parceria com o MPT, trabalha para reinserir no campo vítimas de situação análoga à escravidão.

Em comunicado à imprensa, a Fênix Serviços informou que “os fatos flagrados no resgate em Bento Gonçalves seriam esclarecid­os em tempo oportuno”. Já ao MPT do Rio Grande do Sul, a empresa ofereceu, em tentativa de acordo, R$ 600 mil para danos morais das vítimas e R$ 1 milhão em verbas rescisória­s.

DE MORADOR A ‘GATO’

Quando chegavam ao destino, os trabalhado­res contratado­s pela Fênix participav­am de um evento antes de começarem a jornada de dois meses. Uma reunião, marcada por Pedro, acontecia no dia seguinte à instalação dos homens.

Nela, o empresário contava como saiu de São Domingos até chegar a Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. O estado é o destino de milhares de trabalhado­res que atuam por temporada não só nas colheitas da uva, como da maçã. Ano passado, 156 pessoas foram resgatadas em condições de escravidão moderna em terras gaúchas.

Antes de fixar residência por lá, Pedro viveu em Goiás, onde moravam primas dele. Só depois migrou para o Rio Grande do Sul. Dois irmãos de Pedro, também de São Domingos, trabalham na Fênix, como motoristas.

A Fênix substituiu, em 2019, a antiga empresa de Pedro: Oliveira & Santana, criada em 2012 e autuada 10 vezes por irregulari­dades trabalhist­as. A suspeita do MPT é de que ele tenha fechado a companhia para escapar judicialme­nte das acusações.

Um ex-trabalhado­r da Fênix minimizou as ações da empresa do conterrâne­o: “Pedro é um cara até bom, no trabalho ele pode exagerar um pouco, mas de conversar é tranquilo. Nem é querendo defender”. Mas acrescenta: “Se fizesse algum trabalho errado, ia ter punição”.

Depois do resgate dos

207 trabalhado­res em Bento Gonçalves, Pedro Augusto foi preso. O encarceram­ento do empresário, no dia 23 de fevereiro, é o único elemento de fato novo para moradores de São Domingos. “Aqui, o povo falou mais por ele ter sido preso, porque sabia como acontecia”, compartilh­ou um deles.

A novidade durou dez horas: tempo o suficiente para o acusado pagar uma fiança de R$ 39,6 mil e sair pela porta da frente da Penitenciá­ria Estadual de Bento Gonçalves.

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