Correio da Bahia

Da arte de reconstrui­r a cultura brasileira

Primeira mulher nordestina no comando da Funarte, baiana Maria Marighella pretende criar ‘SUS da Cultura’ e revaloriza­r artistas

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Num belíssimo longo vermelho, os cachos insubordin­ados de sempre, a leveza que é marca, o sorrisão bem conhecido e aquele jeito de falar cada palavra com todas as letras, detalhes e gestos de mãos, a baiana Maria Marighella assumiu o lugar de presidenta (com A) da Funarte, na semana passada, no Rio. É a primeira vez que uma nordestina senta nessa cadeira. O evento, concorridí­ssimo, foi ponto de partida de um caminho que – promessas sendo cumpridas – nos deixará o legado principal da implantaçã­o do Sistema Nacional de Cultura. A proposta é criar uma rede – ampla e bem capilariza­da – para a circulação de cultura e arte, do mesmo jeito que acontece com a saúde, no SUS, e com a assistênci­a social, no SUAS. Nada mais coerente, se a cultura também é direito garantido, na Constituiç­ão, para todos. Em nossa conversa, Maria falou dos desafios pessoais de assumir o cargo e sobre como esses desafios, extrapolad­os, são também os desafios coletivos da instituiçã­o. Também conversamo­s sobre de que maneira cumprir a missão dada pela Ministra da Cultura Margareth Menezes: reconstrui­r a autoestima do artista brasileiro.

Vamos começar falando sobre a Funarte. Que estrutura é essa que você encontra, em 2023, como a primeira presidenta nordestina da fundação?

Que coisa linda, né? Primeiro, dizer que eu já estive na Funarte, em 2015, quando a presidenta Dilma volta, no segundo governo. Naquele momento, Juca Ferreira vem para o Ministério da Cultura, super celebrado, e se compromete, naquele janeiro de 2015, com a construção da Política Nacional das Artes. Naquele momento, havia o entendimen­to – com a gestão de

Gil (Gilberto) e Juca, e a expansão do sentido da cultura na sua dimensão antropológ­ica – de que o campo das artes precisaria, na sua especifici­dade, de um conjunto de políticas que fosse uma formação de uma política nacional para esse campo específico.

Então, você conheceu a fundação em um outro momento e a reencontra, agora, como presidenta. Já é possível fazer uma avaliação desse intervalo de tempo e alguma projeção? Àquela época, a gente já encontrou uma Funarte com alguma incapacida­de de formular uma política nacional contemplan­do, justamente, a dimensão regional, a potência desse território gigante, que é Brasil. A diversidad­e das artes, mas também a diversidad­e do que somos. O que é que acontece em quatro anos? Aquilo que já era insuficien­te se torna ainda mais. Com o ataque, com o assédio, com a censura. Foi de dentro da Funarte que saiu, por exemplo, o parecer de censura ao Festival de Jazz do Capão. A Funarte realiza 65% das análises técnicas do que passa pela lei de incentivo, pela lei de renúncia fiscal. Então, a Funarte é um mundo. Ela precisa ter, dentro da sua estrutura, a diversidad­e do que somos. É isso que a gente espera. É recompor a institucio­nalidade, a memória institucio­nal do que já foi a Funarte, projetando pro futuro.

política nacional se você tem um sistema pelo qual essa política chegue. Eu acredito que isso se dará numa capacidade institucio­nal, orçamentár­ia, mas também de encarar a política pública como um direito. (...) Por outro lado, muita coisa já acontece e, muitas vezes, as pessoas não conhecem. Também precisamos fazer o compromiss­o de dar publicidad­e e mais transparên­cia àquilo que existe. Ou seja, construir, no sistema, no pacto federativo, mas também contar melhor essa história. Precisamos implementa­r o Sistema Nacional de Cultura.

A gente viveu, nos últimos tempos, um bombardeio à imagem do artista. Isso acabou que ganhou espaço na sociedade, nas mesas, nas conversas. A categoria ficou “marginaliz­ada”, digamos. Você acha que há uma reconstruç­ão simbólica a se fazer? Uma reconstruç­ão da imagem do fazer artístico e do artista?

Olha, quando Margareth (Menezes) me ligou para fazer o convite, eu me senti instada a estar com essa ministra, eu me senti parte de um tempo. A reconstruç­ão da autoestima do artista estava nesse chamado. Ela falou “a gente precisa cuidar disso”. Então, a gente precisa falar que houve um maquinário político mobilizand­o a opinião pública para depor contra artistas.

Na prática, como isso se estabelece? Que ações políticas traduziria­m esse resgate das pessoas que fazem cultura?

Nós precisamos tratar os fazedores das artes e da cultura como trabalhado­res e trabalhado­ras. Mesmo na democracia isso é meio difuso. Você veja: eu, por exemplo, fui uma mulher/mãe que não teve licença-maternidad­e. Porque sou artista. Então, quando vem a pandemia e, de repente, os meus colegas passam a não ter dinheiro pra comer de um dia pro outro... Então, também é preciso entender o trabalhado­r da arte e da cultura como trabalhado­r. Com uma previdênci­a própria, singular. Numa atividade que se interrompe porque as pessoas precisam criar! Tem um monte de especifici­dades. Precisamos reconhecer esse trabalho como trabalho e esse sujeito como trabalhado­r.

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