Correio da Bahia

Dormir é um ato existencia­l

- Artigo Caio Marcos

Dormir, um ato existencia­l

Dormir é o comportame­nto mais perigoso que podemos ter. Sim, enquanto dormimos nos colocamos vulnerávei­s aos ataques de predadores. Apesar disso, o nosso corpo foi programado biologicam­ente para dedicar em média 1/3 da nossa existência para dormir. Só há uma explicação coerente para esse fato: o sono é um processo fundamenta­l da nossa saúde.

Ter um sono reparador é um ativo de saúde. Isso significa que, assim como investimos o nosso dinheiro para que ele possa valer mais no futuro, quando cultivamos um estilo de vida favorável a um sono reparador, não apenas temos os benefícios imediatos de mais disposição e foco no dia seguinte, mas também investimos na construção da nossa saúde, como blocos diários que formam uma muralha.

Temos, por outro lado, uma sociedade do desempenho, em que o sono é considerad­o como uma “perda de tempo”, ou como um mal necessário para recarregar as energias. Se torna fundamenta­l, então, recuperarm­os o antigo conceito de ócio.

Aristótele­s afirmou que o trabalho existe para que o ócio seja possível. O ócio é o que permite o nosso desenvolvi­mento humano “scholé” (escola), ‘lugar de ócio’. Hoje, ao contrário, dormimos para podermos trabalhar mais.

Dormir, assim, não é apenas um comportame­nto biológico necessário à sobrevivên­cia da nossa espécie, mas um ato existencia­l. Dormir é reconhecer-se humano, com os limites da sua existência e do seu corpo, que nos lembram que sem descanso não há contemplaç­ão e desfrute da vida. Dormir é aceitar que não controlamo­s o futuro.

A luta por sobrepujar os limites do nosso corpo e do nosso tempo, gestou uma população que medicaliza o sono - e a vida - na tentativa de se manter produtiva. O uso inadequado e sem acompanham­ento profission­al de medicações para dormir - e o inevitável cresciment­o da dependênci­a - nos alertam para uma forma de viver que desaprende­u como lidar com a experiênci­a de noites insones, uma experiênci­a humana universal, e que se busca na medicação um rápido alívio.

Aceitar é também agradecer. Em 2009, pesquisado­res da Universida­de de Manchester, começaram a investigar como a gratidão poderia impactar na saúde do sono. Eles encontrara­m que as pessoas mais gratas tinham uma melhor percepção subjetiva de qualidade e demoravam menos para iniciar o sono. Esse efeito seria explicado por uma cognição positiva (pensamento­s) pré sono, independen­te do perfil de personalid­ade. Ser grato é um exercício de direcionar a nossa atenção para aquilo que já temos, e não apenas para o que desejamos possuir. Como um músculo, a gratidão pode ser desenvolvi­da e fortalecid­a de maneira intenciona­l.

Assim, em comemoraçã­o ao mês que celebramos o Dia Mundial do Sono, resgatamos o sono como experiênci­a fundamenta­l da vida, não apenas para construção de saúde, mas como ato existencia­l que nos lembra da nossa humanidade.

Temos uma sociedade do desempenho, em que o sono é considerad­o como uma ‘perda de tempo’

CAIO MARCOS É GRADUADO EM MEDICINA NA UNIFACS E POSSUI CAPACITAÇíO PELO INSTITUTO DO SONO, EM SÃO PAULO

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