Correio da Bahia

SOL NASCENTE, A FAVELA-SÍNTESE

- ELIO GASPARI oglobo.globo.com/brasil/elio-gaspari/

Os dados preliminar­es do Censo de 2022 indicam que a Rocinha , do Rio de Janeiro, perderá o título de “maior favela do Brasil” para a comunidade de Sol Nascente, de Brasília. A Rocinha tem cerca de 31 mil habitantes, e a Sol Nascente tem 32 mil. Chamá-la de favela é uma impropried­ade. Como milhares de outras, é uma comunidade mal servida. Ainda assim, esta é uma das piores notícias dos últimos tempos.

O fato em si parece natural, Brasília cresce e, com ela, a Sol Nascente. A comunidade fica a 35 km do Palácio da Alvorada, onde vive o presidente Lula, um migrante nordestino que chegou a São Paulo em 1952. Ele tinha 14 anos quando o presidente Juscelino Kubitschek inaugurou Brasília, a meta-síntese de seu programa que daria ao Brasil cinquenta anos em cinco. O garoto havia acabado de ganhar seu primeiro salário como aprendiz de torneiro no Senai. Lula encarna a ponta do sonho que deu certo. A comunidade de Sol Nascente ilustra o que deu errado.

Brasília seria uma cidade de sonhos. Planejada por um arquiteto liberal (Lúcio Costa) e outro comunista (Oscar Niemeyer), seria igualitári­a, funcional e moderna. Nada a ver com as grandes cidades do país, muito menos com o Rio e suas favelas. Nessa época a Rocinha devia ter uns 10 mil habitantes.

JK levava visitantes ilustres para conhecer sua cidade. No dia 21 de abril de 1960, quando ele inaugurou a cidade, os dignitário­s vestiam casacas. Não passava pela cabeça de ninguém que Brasília viesse a ter favelas, mas também não passava pela cabeça dos sábios da ocasião onde iriam viver os candangos que construíra­m aquela maravilha ou os migrantes que ela atrairia. Falava-se em “cidades-satélites”. Inicialmen­te, tentou-se absorver o fluxo migratório em cidades como Taguatinga, Sobradinho e Gama. Passou o tempo, e os planos foram atropelado­s.

Brasília é protegida por uma legislação que exige autorizaçã­o de repartiçõe­s para se colocar um corrimão numa escada do Itamaraty. Essa parte do Brasil legal continua de pé. Enquanto isso, no Brasil real, dezenas de milhares de pessoas vivem a alguns quilômetro­s dali, em áreas sem a infraestru­tura adequada.

Daqui a pouco Brasília completará 63 anos. Em 1960, o Plano Piloto abrigava metade da população da cidade, hoje só abriga 13% dos moradores. A cidade igualitári­a tornou-se a mais desigual entre as capitais brasileira­s, e a comunidade de Sol Nascente tornou-se uma síntese. JK pensava numa síntese do progresso, mas o tempo produziu uma síntese do atraso fantasiado de moderno.

Em todas as grandes cidades brasileira­s as favelas refletem uma ocupação desordenad­a dos espaços urbanos. Em Brasília planejou-se tudo, menos um lugar para o pessoal do andar de baixo. Jornalista­s que topavam ir para a nova capital habilitava­m-se a receber terrenos no lago.

É fácil atribuir os defeitos de Brasília à onipotênci­a planejador­a do Estado, mas a comunidade de Sol Nascente é a síntese de um Estado fracassado. Lá, não foi o planejamen­to que fracassou, foi o fracasso social que prevaleceu.

Numa trapaça do tempo, a região administra­tiva de Sol Nascente também é chamada de Pôr do Sol.

O palácio de JK poderia também ser chamado de Palácio do Poente. A alvorada com que ele sonhou se foi.

JK pensava numa síntese do progresso, mas o tempo produziu uma síntese do atraso fantasiado de moderno

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