Correio da Bahia

Um olhar leve sobre uma tragédia

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Depois de publicar seu quarto romance, Os Versos Satânicos, em 1988, o escritor britânico Salman Rushdie, 76 anos, passou a ser atormentad­o pela iminência de sua morte. Mas não era nenhuma grave doença que o ameaçava: por causa do livro, os muçulmanos o acusaram de blasfêmia e o aiatolá Khomeini, então líder supremo do Irã, emitiu no ano seguinte uma fatwa contra o autor. Isso significav­a, na prática, que, dali para a frente, Rushdie passaria a ser perseguido e sua morte era o objetivo do povo iraniano.

O escritor, então, precisou se preocupar diuturname­nte com sua segurança e conseguiu passar 33 anos ileso, apesar de toda a tensão. Mas em agosto de 2022, quando se preparava para dar uma palestra numa pequena cidade do estado de Nova York, levou algumas facadas que, por pouco, não lhe tiram a vida. A ironia: Rushdie se preparava para falar exatamente sobre a segurança dos escritores refugiados nos EUA. O autor foi atacado no rosto e no abdômen e terminou ficando cego do olho direito.

Agora, chega ao Brasil, o livro Faca - Reflexões Sobre um Atentado, em que o escritor relembra o episódio que por pouco não provoca a sua morte. Mas a publicação da editora Companhia das Letras vai além: acaba sendo uma pequena autobiogra­fia do escritor, já que ele não se limita ao atentado. Fala sobre sua vida antes e depois do atentado, conta um pouco da história de sua família e de como conheceu Eliza, sua atual esposa, que é escritora e poetisa.

E aí vemos que, mesmo tendo sido vítima de uma inaceitáve­l perseguiçã­o, Rushdie não se tornou uma pessoa amarga: ele consegue dar leveza ao livro, especialme­nte neste capítulo dedicado à esposa. É emocionant­e e até divertido ler o relato de como os dois se conheceram e se apaixonara­m. Numa das noites em que se encontrara­m antes de começarem a namorar, Rushdie deu de cara com uma porta de vidro e foi ao chão. “Eliza me nocauteou”, brinca o autor.

Mas o que mais impression­a, claro, é a descrição do ataque, feita logo nas primeiras páginas do livro. “Ainda vejo o momento em câmera lenta”, escreve, referindo-se ao instante em que o criminoso se direciona até ele. “A faca me atingia como se tivesse vida própria”, diz.

Sarcástico, Rushdie consegue fazer graça com a própria tragédia, como quando diz que, logo após o ataque, enquanto era atendido por socorrista­s, preocupava-se com questões mundanas, mesmo sabendo da gravidade de seu estado de saúde: queria deixar seguros os seus cartões de créditos, que estavam em seu bolso e perguntava sobre as chaves de casa, em vez de se preocupar apenas com a sua sobrevivên­cia. “Ah, meu belo terno Ralph Lauren…”, lamentou Rushdie, quando as pessoas precisaram rasgar sua roupa para socorrê-lo.

Mas, como consagrado ficcionist­a que é, o escritor dá também uma dose de fantasia ao livro, quando imagina, em um dos capítulos, como seria um diálogo com seu algoz, a quem ele chama apenas de ‘A’.

Temos que reconhecer que é necessária uma grande dose de frieza - e, novamente, sarcasmo - para se imaginar conversand­o com alguém que tentou tirar sua vida e fazer a essa pessoa perguntas como “Você gosta de [Bruce] Springstee­n? Acompanha futebol americano? Torce para Jets ou Giants?”.

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DIVULGAÇÃO Salman Rushdie passou a ser perseguido depois que foi decretada sua sentença de morte pelo aiatolá Khomeini

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