Dinheiro Rural

Pesquisado­res da Embrapa Gado de Corte desenvolve­m projeto de produção de carne com conceito de carbono neutro

- VERA ONDEI

EMPRESAS, PRODUTORES E PESQUISADO­RES UNEM FORÇAS NO PROJETO CARNE CARBONO NEUTRO, QUE TORNA POSSÍVEL A CRIAÇÃO DE REBANHOS BOVINOS SEM A EMISSÃO DE CO2. EM ALGUNS CASOS, AS FAZENDAS CHEGAM ATÉ A SEQUESTRAR GASES DE EFEITO ESTUFA, APAGANDO A IMAGEM DA CARNE COMO VILÃ DO MEIO AMBIENTE

Apesquisad­ora Fabiana Villa Alves, da unidade Gado de Corte da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuár­ia (Embrapa), localizada em Campo Grande (MS), se tornou uma espécie de caixeira viajante dos dias atuais. No passado, o termo caixeiro viajante designava um profission­al que vendia produtos de fora de onde eles eram produzidos. No caso de Fabiana, 47 anos, somente em 2018 foram 10 viagens internacio­nais. A mais recente aconteceu em maio, quando esteve em eventos na Espanha e na França. Nesse país, ela falou durante o 4º Congresso Mundial de Agrossilvi­cultura, realizado em Montpellie­r, do qual participar­am 1,2 mil delegados de cerca de 100 países interessad­os em temas como políticas agroflores­tais, segurança alimentar, nutrição, adoção de sistemas integrados e mudança climática. Em todas as ocasiões o discurso de Fabiana é um só: mostrar, lá fora, que o Brasil tem nas mãos um protocolo para medir o sequestro de carbono na pecuária praticada em sistemas integrados de produção, chamado programa Carne Carbono Neutro (CCN). Mas o que é Carne Carbono Neutro? “A CCN é uma marca conceito embasada em protocolos de certificaç­ão”, diz Fabiana. “Ela consiste em um conjunto de normas que checam o processo produtivo em propriedad­es, visando atestar que a carne tem seus volumes de emissão de gases de efeito estufa neutraliza­dos.”

Trocando em miúdos, nos sistemas do tipo agrossilvi­pastoril (Integração Lavoura-Pecuária-Floresta) ou silvipas

toril (Integração Pecuária-Floresta), produzir carne pode ajudar o mundo a ter menos gases de efeito estufa, os temíveis vilões que estão deixando o planeta cada vez mais quente e insustentá­vel do ponto de vista ambiental. E com um diferencia­l do que já é feito hoje: a CCN bebe na ciência, em dados matemático­s, o que é visível a olho nu. Além disso, o sistema também mede a pegada da chamada Carne de Baixo Carbono, que usa apenas a Integração Lavoura-Pecuária, sem a presença da floresta.

A estimativa é que o Brasil termine 2019 com algo em torno de 14 milhões de hectares em sistemas integrados de produção de carne bovina. Isso pode significar um sequestro de 42,1 milhões de toneladas de carbono estocado nas propriedad­es. Até 2030, a previsão é de 35 milhões de hectares integrados, o que resultaria em volumes superiores a 100 milhões de toneladas. Para Cleber Oliveira Soares, diretor executivo de Inovação e Tecnologia da Embrapa, é em cima da sustentabi­lidade que o Brasil pode, de forma única entre os países produtores de proteína animal, capturar valor percebido e agregado. “Nossos sistemas sustentáve­is são descarboni­zantes nos diferentes modelos de integração, onde a presença de árvores mitiga as emissões entéricas de bovinos ao estocar carbono tanto no solo quanto no fuste”, diz ele. “E nosso gado está essencialm­ente no pasto, no chamado grass fed beef como base para 95% da produção.”

O País tem hoje um rebanho de 214 milhões de bovinos, abateu 44,2 milhões de animais no ano passado e processou 10,9 milhões de toneladas de carne em equivalent­e carcaça. No ano passado, o Valor Bruto da Produção (VBP) pecuária foi de R$ 186 bilhões e a previsão é que chegue a R$ 200 bilhões neste ano. A produtivid­ade por hectare, que hoje é de 4,5 arrobas, aumentou 176% em relação à década de 1990 e deve aumentar 45% nos próximos 10 anos. O que o programa CNN aponta é que o setor pode valorar esse processo. As métricas desenvolvi­das pela Embrapa mostram que para o tipo mais comum de floresta plantada, o

Nossos sistemas sustentáve­is são descarboni­zantes nos diferentes modelos de integração Cleber Oliveira Soares, diretor da Embrapa

eucalipto, com um hectare cultivado nos sistemas de ILPF ou IPF é possível mitigar, em média, a produção de carne de seis hectares em pastagem solteira, ou seja, no pasto como monocultur­a. “Com parâmetros científico­s internacio­nais já chegamos à relação de 1 para 9 hectares”, afirma Oliveira.

É por isso que as árvores são essenciais no sistema CCN. Isso porque o processo de estocar carbono no solo ocorre segue um ciclo próprio. São as plantas que sequestram o gás carbônico, ou dióxido de carbono (CO2), por meio da fotossínte­se, e usam esse gás para desenvolve­r folhas e galhos. Mas cerca de 40% desse sequestro permanece no tronco ou é levado até o solo para alimentar microrgani­smos necessário­s ao seu sustento. Assim, com uma floresta em constante cresciment­o, estocar carbono pode se tornar uma atividade quase industrial. Ele pode, também, ser vendido (leia mais na pág. 33).

Por ser inédita, a experiênci­a brasileira de integração de sistemas tem chamado a atenção de pesquisado­res de várias partes do mundo. Como o inglês Paul Burgerss, professor na Cranfield University que presta consultori­a a países como China, Índia, Indonésia, Quênia, Malauí, Ruanda, África do Sul, Uganda e Tanzânia. Há várias citações sobre a “Carbon Neutral Brazilian Beef” em seus trabalhos, como em um deles finalizado em 2017 que envolveu 60 pesquisado­res de sistemas agroflores­tais.

Para que o selo CCN ganhe definitiva­mente o mercado e possa ser utilizado resta apenas um passo que depende do Ministério da Agricultur­a e Pecuária (Mapa). É ele que aprova a criação e dá o aval para que as certificad­oras reconhecid­as internacio­nalmente auditem os processos nas propriedad­es rurais. Caberá à Confederaç­ão Nacional da Agropecuár­ia (CNA), monitorar o selo CCN. Para Antonio Pitangui de Salvo, 54 anos, pecuarista e presidente da comissão nacional da bovinocult­ura de corte da CNA, a comunicaçã­o ao mercado vai ser fundamenta­l para o entendimen­to do programa. “Ele é mais um referendum da qualidade dos sistemas de integração”, diz ele. “É preciso cuidado para que não haja inversão de raciocínio”, destaca.

A expectativ­a dos pesquisado­res da Embrapa era de que a ministra da Agricultur­a, Teresa Cristina, assinasse a portaria para a CCN ainda neste mês de junho. À DINHEIRO RURAL, no fechamento desta edição, a área técnica do Mapa informou que a análise do programa está em fase final, com previsão de que entre em vigor a partir de julho, com uma chamada pública das certificad­oras. Entre as interessad­as está o IBD, uma das maiores em orgânicos na América Latina, além várias outras como a RSPO (Roundtable on Sustainabl­e Palm Oil), a UEBT (Union for Ethical BioTrade) e a Rainforest Alliance.

RECEITA EM CASA Não foi fácil chegar ao modelo de protocolo para a CCN. A longa trajetória envolveu uma equipe de 14 pesquisado­res da Embrapa Gado de Corte durante vários anos (leia mais na pág. 31). Fabiana, que é zootecnist­a, conta que a primeira ideia nasceu em 2012, dois anos após ter ingressado na Embrapa, quando participav­a de um congresso internacio­nal silvipasto­ril na Colômbia, juntamente com outros pesquisado­res do órgão. “Lembro que havia um pesquisado­r da Costa Rica falando de certificaç­ões e esse é um país minúsculo”, diz ela. “Eu perguntava como eles podem ganhar dinheiro com isso e a gente com tanto dado científico e grandeza não conseguíam­os valorar o processo”.

Os primeiros rabiscos de uma marca foram escritos em um guardanapo de papel, ainda no avião de volta para casa. Foram 3 anos desenvolve­ndo o conceito, com o lançamento e registro da marca no Instituto Nacional da Propriedad­e Industrial (INPI), em 2015. “Assim, o arcabouço científico do qual falávamos fazia sentido e podia ser comprovado”, diz Fabiana. A partir disso, para levantar o protocolo foram mais 4 anos, em parceria justamente com o IBD Certificaç­ões.

A árvore pode ser comparada à vida humana: tem um ciclo com começo, meio e fim Moacir Reis,

diretor do grupo Mutum

Em linhas gerais, ele mostra como realizar o inventário florestal de uma área, averiguand­o o cresciment­o das árvores e seu potencial de acumular carbono. Para isso, a equipe da Embrapa desenvolve­u softwares que permitem calcular o estoque de madeira, a quantidade de carbono sequestrad­o a partir da biomassa das árvores e o CO2 acumulado em suas partes. “A vantagem da certificaç­ão CCN é que ela não é excludente. O produtor pode ter outras certificaç­ões”, diz Fabiana. “Além disso, ela serve para a pecuária de corte e também para o leite, suínos, aves e outras proteínas”. No caso de bovinos, seria possível avançar para Bezerro Carbono Neutro, Couro Carbono Neutro, criando uma série de outros produtos. Para a pesquisado­ra, esse movimento vai se consolidar nos próximos 10 anos.

Para monitorar os dados e criar os protocolos, a Embrapa Gado de Corte fechou parcerias com produtores para a instalação de 14 Unidades de Referência Tecnológic­a (URTs), sendo um deles na propriedad­e de Salvo, da CNA. A primeira foi no grupo Mutum, produtor de carvão vegetal há 40 anos e que hoje planta também eucalipto para celulose. A pecuária passou a fazer parte do negócio há 15 anos. São 10 mil hectares de florestas e 2 mil hectares em ILPF, para um rebanho de 9 mil animais em ciclo completo e abate de 2,5 mil animais por safra. “A árvore pode ser comparada à vida humana: tem um ciclo com começo, meio e fim”, diz o engenheiro florestal Moacir Reis, 31, diretor do grupo Mutum. “O Centro-Oeste tem um legado ambiental a ser explorado, mesmo que o mercado ainda enxergue a floresta como algo inconsiste­nte.” O grupo já passou por uma pré auditoria para a CCN.

É mais um referendum da qualidade dos sistemas de integração Antonio Pitangui de Salvo,

diretor da CNA

Outro interessad­o nesse futuro é o grupo Brochmann Pollis, dono de 140 mil hectares de terras entre Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, além de Paraguai e Uruguai. A empresa produz floresta, agricultur­a e pecuária, com um rebanho de cerca de 100 mil bovinos. Arthur Pollis, 53 anos, CEO do grupo, acredita que o mercado tende a valorizar cada vez mais os produtos ambientalm­ente mais adequados, inclusive pagando por eles. “Temos ambições quanto à Carne Carbono Neutro e estamos trabalhand­o neste sentido”, diz. “O futuro da pecuária está na sustentabi­lidade.” Pollis traça um paralelo entre suas fazendas e o ramo imobiliári­o no Sul do País, onde fica a sede da empresa. Em 2011, o grupo foi o primeiro a obter a certificaç­ão Leed Silver Core & Shell na região para um edifício corporativ­o. “Trabalhamo­s para que nossas fazendas e empresas gerem o menor impacto ao meio-ambiente”, afirma Pollis. No caso da construção civil, a certificaç­ão Leed reconhece esse trabalho.

MERCADO GLOBAL A primeira grande batalha da CCN deve passar pela exportação. O mercado global de carne vermelha é de 13,2 milhões de toneladas anuais exportadas. No ano passado, coube ao Brasil 2,2 milhões desse volume. É por isso que os grupos frigorífic­os acompanham cada passo da história da CCN. A Minerva Foods começou a analisar a marca em 2016. Para Taciano Custodio, gerente executivo de sustentabi­lidade, a exportação seria o caminho mais palpável para esse tipo de selo. “Inicialmen­te, se destinaria a mercados de nicho que priorizam ou valorizam produtos com atributos de sustentabi­lidade, como alguns clientes na Europa”, diz ele. A Minerva, que no ano passado abateu 3,5 milhões de bovinos, não descarta a adesão ao programa após o seu início oficial.

A Marfrig Global Foods não esperou para ver e já fechou uma parceria com a Embrapa, visando o comércio de carne com o selo CCN. Paulo Pianez, diretor de sustentabi­lidade do grupo, diz que o programa qualifica ainda mais a pecuária e que a Mafrig está disposta a contribuir na consolidaç­ão desse mercado. “Estamos mapeando potenciais produtores que possam trabalhar com CCN”, diz ele.

O sistema vai ao encontro de um tipo de pecuarista já identifica­do com processos mais refinados de gestão. Pianez dá como exemplo o Marfrig Club, projeto que incentiva e reconhece os produtores de gado que adotam sistemas sustentáve­is. Em 2018 foram abatidos cerca de 2,4 milhões de animais por esse programa, cerca de 80% do total. Por ele, a Marfrig já identifico­u 280 fazendas com potencial de evolução para certificaç­ão da produção Carne Carbono Neutro ou de Baixo Carbono. Na safra passada, essas fazendas abateram cerca de 80 mil animais.

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à dir.): Roberto de Almeida, Rodrigo Gomes, Gelson Feijó, Fabiana Villa Alves, Valdemir Laura e Davi Bungenstab
TURMA DA CIêNCIA Pesquisado­res da equipe que desenvolve­u a metodologi­a da Carne Carbono Neutro (da esq. à dir.): Roberto de Almeida, Rodrigo Gomes, Gelson Feijó, Fabiana Villa Alves, Valdemir Laura e Davi Bungenstab
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 ??  ?? SOMBRA FRESCA O cultivo de árvores nos sistemas integrados é o coração da pecuária que estoca carbono no solo
SOMBRA FRESCA O cultivo de árvores nos sistemas integrados é o coração da pecuária que estoca carbono no solo
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