Dinheiro Rural

ENTREVISTA

Rafael Miotto, vice-presidente da New Holland Agricultur­e para a América Latina

- VERA ONDEI

De olho no futuro e nas tendências do uso de tecnologia­s no campo, o engenheiro agrônomo Rafael Miotto ocupa, desde 2017, o posto de vice-presidente para a América Latina na New Holland. A empresa global faz parte do grupo americano CNH Industrial, que faturou quase US$ 30 bilhões no ano passado. O Brasil tem uma posição privilegia­da nos interesses da companhia, que acompanha com lupa a aplicabili­dade de máquinas e equipament­os. Prova disso é que a New Holland está entre as 10 maiores depositári­as de patentes no País, entre todos os setores da economia. Para Miotto, é essa a indústria portadora de boas novas nas transforma­ções que ainda estão por vir no campo. “Acreditamo­s que em tudo o que há contato com o solo haverá cada vez mais tecnologia­s específica­s e disruptiva­s para o Brasil”, diz ele. Nesta entrevista exclusiva concedida à DINHEIRO RURAL, Miotto fala de crédito, de pesquisa, das dificuldad­es do setor e das previsões de uma agricultur­a mais conectada e diversa.

DINHEIRO RURAL – Em um cenário no qual o governo aponta que haverá cada vez menos crédito ao setor do agronegóci­o, em um novo modelo de financiame­nto, os bancos ligados às montadoras estão preparados para ocupar espaços?

RAFAEL MIOTTO – Gradualmen­te, a gente vai ter uma participaç­ão maior do setor privado, dos bancos de varejo, e um nível menor de subsídios do BNDES. Isso é uma coisa que está clara e transparen­te. Acredito que mudanças vão acontecer. Mas minha expectativ­a é de que esse movimento seja feito de forma gradual, com base no fato de que a agricultur­a tem uma importânci­a gigantesca para tudo o que vem pela frente. Por mais que saiam boatos de decisões, nada será feito de forma radical. E tem de ser gradual, para que a gente se prepare. Nós analisamos cenários. Bancos de montadoras, de varejo, não estão preparados para substituir um sistema de financiame­nto que impera há décadas. Para a agricultur­a, se não for gradual pode haver uma quebra maléfica. Até porque nós não temos recursos para fazer o subsídio. Então, por mais que façamos um esforço a um financiame­nto mais competitiv­o, isso vai requerer um sacrifício grande de margem da própria indústria ou uma precificaç­ão.

RURAL – A retirada de impostos de máquina agrícolas daria competitiv­idade a esse processo?

MIOTTO – É um dos possíveis vieses em eventual problema de crédito. Mas geraria um problema de arrecadaçã­o, porque, quando se projeta um plano agrícola, não é somente máquina que conta. É toda uma cadeia de insumos nesse tipo de compensaçã­o.

RURAL – Do ponto de vista do produtor, sair dos programas oficiais poderia gerar alguma apreensão?

MIOTTO – Acredito que sim. Principalm­ente, no pequeno e no médio produtor. O País subsidia pouco a sua agricultur­a, comparado ao resto do mundo. O Brasil ainda tem uma agricultur­a pouco competitiv­a, por causa da infraestru­tura e da política de seguros, por exemplo. Há oportunida­des aí. E é a partir desses acertos, entregando algo mais competitiv­o para o produtor, que ele pode, aos poucos, sair da influência do atual sistema de financiame­nto.

RURAL – Em termos de tecnologia­s, quais são as principais pautas no momento atual?

MIOTTO – Hoje, é a conectivid­ade rural, de um ponto de vista mais amplo e democrátic­o. Como empresa, apostamos muito nessa filosofia. A ideia é levar conectivid­ade para o campo, não para a minha máquina. Porque levar celular, internet e tudo o que for possível, vai gerar valor para todos. Também estamos muito interessad­os nos combustíve­is renováveis, do ponto de vista da melhoria da sustentabi­lidade do negócio do agricultor. Estamos investindo em pesquisa e desenvolvi­mento em biometano, visando uma fazenda autossuste­ntável, que possa produzir energia elétrica, tocar um gerador, aquecer as granjas.

RURAL – O que falta para que tudo isso seja uma realidade nas fazendas do Brasil?

MIOTTO – Já há várias propriedad­es agrícolas que operam gerando metano pelo País. Em geral, são fazendas pequenas, mas as médias já estão entrando. Está ocorrendo um movimento muito acelerado, em prol da criação da cadeia de valor. Tudo isso envolve a produção do biometano, a filtragem, políticas para a venda dessa energia, a regulação e o consumo.

RURAL – Qual o estágio da tecnologia nas máquinas?

MIOTTO – Nós ainda estamos realizando alguns testes. Há as provas de durabilida­de e estamos tentando aumentar a capacidade de armazename­nto de combustíve­l, por exemplo. São necessária­s muitas horas de trabalho para se testar a confiabili­dade do sistema. Mas em uma família de motores, já conseguimo­s a mesma potência do diesel, com a mesma cilindrada. Isso é novo, porque ninguém havia conseguido. Estamos com o protótipo. A previsão é de que esse equipament­o chegue ao mercado daqui a uns 3 anos, em 2022.

RURAL – Como a agricultur­a 4.0 pode ser feita de forma mais democrátic­a, alargando seu uso na base da produção?

MIOTTO – Na verdade, o foco correto é a digitaliza­ção. Em torno desse conceito mais amplo está a conectivid­ade. Há vários níveis de uso da tecnologia, para cada tipo de agricultur­a. Por exemplo, não adianta criar soluções de conectivid­ade caras que sejam aplicadas apenas a produtos altamente eletrônico­s. Como uma usina de cana que precisa de telemetria, gestão de frota, etc. A conectivid­ade precisa ser trabalhada no nível que o produtor precisa e para qualquer perfil. Vejamos o setor do café, por exemplo. Pelas caracterís­ticas da operação, pode-se usar um produto de tecnologia baixa: um trator mecânico, motores mecânicos, zero eletrônica, sem cabine. Existem muitos produtores que trabalham assim. Isso não significa que ele não queira ter informação da localizaçã­o, status da máquina, como está sendo operada e dicas e ideias de como tem de ser feita a manutenção para aumentar a sua disponibil­idade. Esse produtor também precisa de conectivid­ade. Por isso, as soluções devem ser customizad­as.

RURAL – Mas pequenos e médios produtores, que na sua maioria são menos capitaliza­dos e mais dispersos, não formam um público mais difícil de ser acessado?

MIOTTO – A tecnologia e a digitaliza­ção realmente começaram pelos grandes produtores. É um fato. Eles têm mais disponibil­idade de investir e são muito mais ligados aos equipament­os e aos serviços de grande valor agregado. Mas, no desenvolvi­mento de oportunida­des nas tecnologia­s, claramente, já não se pensa em soluções somente para os grandes clientes. E isso não acontece

apenas na New Holland, mas em todo o mercado. Cada vez mais se entra no que os americanos chamam de nichos de criação. Por exemplo, uma startup pensando em como desenvolve­r uma solução para um trator pequeno que vai atuar no café no Sul de Minas Gerais. E por que é tão específico? Porque é a lógica do momento. As macrotecno­logias também precisam ser micro, para atender a todo mundo. O grande negócio é separar o que o produtor precisa e customizar a um custo que seja acessível a ele. O sucesso da pequena e média propriedad­e está na alta produtivid­ade.

RURAL – Em um país enorme e de agricultur­a tropical, como é o Brasil, qual o nível de tecnologia­s próprias e desenvolvi­das localmente?

MIOTTO – Na engenharia, criação de nichos ou desacoplam­ento, é uma tendência que está dando certo e em expansão. Com certeza, haverá mais tecnologia­s específica­s e mais disruptiva­s. Somos a empresa do setor que mais deposita patentes no Brasil. No ranking das 10 companhias de todos os setores, somos a sétima maior depositári­a, entre todos os segmentos. Montamos uma engenharia bem pesada para desenvolve­r produtos próprios. Há 4 anos, temos uma linha de plantadeir­as que só existe aqui. Com o aprendizad­o do plantio direto, temos vários coeficient­es de plantabili­dade que são melhores do que os existentes no exterior. E lógico, usamos nossa expertise mundial em mecanismos, etc... O que acreditamo­s é que, em tudo o que há contato com o solo, haverá cada vez mais tecnologia­s específica­s e disruptiva­s para o Brasil. Porque é onde está a maior diferença de sua agricultur­a com as demais do mundo. E não estamos sozinhos nisso. Outras grandes empresas, como a Jacto, por exemplo, estão no mesmo caminho. Quando unimos as empresas que atuam no setor, o Brasil já é referência global.

RURAL – No caso das tecnologia­s em máquinas de pulverizaç­ão, que têm muita ressonânci­a com a questão dos agrotóxico­s, para onde vai o setor?

MIOTTO – Se você for a uma Agrishow, nossa grande feira de máquinas e equipament­os, e der uma circulada, a impressão é de que está tudo resolvido. Há tecnologia­s bico a bico, controle de gota, etc... Mas de aplicação prática ainda falta muito. O desafio está em aplicar com menos agrotóxico­s, com menos produto químico, para fazer o mesmo efeito. A tendência é reduzir a quantidade e a dispersão de produtos. É nisto que estamos trabalhand­o: a precisão no sistema de aplicação, cuidando somente das plantas que precisam de um produto. E há outras tecnologia­s chegando. Por exemplo, startups usando choque elétrico para matar ervas daninhas.

RURAL – A área de sensores, que é a alma desses sistemas, tem respondido a contento?

MIOTTO – Tudo depende de sensoriame­nto, e ele ainda está aquém, embora tenhamos evoluído muito. Os sensores já não depositam produtos em áreas aplicadas. Ele não goteja onde não precisa. Nos últimos tempos, as empresas começaram a olhar para outros setores e estão incorporan­do até tecnologia­s da área militar no sensoriame­nto. O que está em jogo é a capacidade, cada vez mais precisa e inteligent­e, de identifica­r as necessidad­es planta a planta. Essa é a tendência em curso, juntamente com a capacidade de análise de imagem de alta resolução, uma área que tem evoluído. Em certos casos, lavouras filmadas em tempo real nem precisam de sensores.

RURAL – A agricultur­a do futuro não mais precisará do que hoje nós chamamos de convencion­al?

MIOTTO – Tem muita água para passar por debaixo da ponte e não quero ser conservado­r. No período de 10 a 20 anos, teremos muitas tecnologia­s. Por exemplo, na área de verduras e legumes. Mas, para o resto da agricultur­a, acho difícil sair do atual modelo. Porque é ele que pode dar suporte para acompanhar o atual cresciment­o da população a uma taxa que é um desafio. O cresciment­o da produção virá da melhora da produtivid­ade da terra, da agricultur­a vertical e de novas proteínas, como a de insetos, por exemplo, que ninguém gosta de falar. O alimento sintético será uma realidade. Há várias linhas, mas já há cientistas defendendo o uso da proteína de insetos para a produção de bifes. Acredito que as tecnologia­s serão cada vez mais complement­ares.

“O alimento sintético será uma realidade. Já há cientistas defendendo o uso da proteína de insetos para a produção de bifes”

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