Estado de Minas (Brazil)

Não há anjos na política, nem mesmo no STF

- LUIZ CARLOS AZEDO

Quarto presidente norte-americano, James Madison teve um papel fundamenta­l na elaboração da Constituiç­ão e da Declaração de Direitos dos Estados Unidos, com Alexandre Hamilton e John Jay, nos ensaios de “O federalist­a”, a publicação do fim do século 18 que se tornou um clássico da ciência política. “Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos”, resumiu (“O federalist­a”, nº 51), ao se referir aos políticos de um modo geral. A citação é oportuna porque estamos diante de polêmicas decisões monocrátic­as de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que parecem mais pautadas pelo jogo político e grandes interesses econômicos do que pela legislação vigente.

Madison dedicou especial atenção à necessidad­e de controlar os detentores do poder, porque os homens não são governados por anjos, mas por outros homens: “Ao constituir­se um governo – integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens –, a grande dificuldad­e em que se deve habilitar primeiro o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo”. Acrescento­u: “Não se pode negar que o poder é, por natureza, usurpador e que precisa ser eficazment­e contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados” (“O federalist­a”, nº 48).

Foi com esse objetivo que outro federalist­a, Alexander Hamilton, elaborou os seis capítulos (78 a 83) de “O federalist­a”, nos quais defende a independên­cia do Poder Judiciário

e trata de três questões: a escolha dos juízes, seus mandatos e divisão de competênci­as com os demais poderes. Defendeu a nomeação dos magistrado­s pelo presidente da República, mas com supervisão do Senado, para que houvesse controle recíproco do Executivo e do Judiciário. Na Convenção Constituin­te, uma ala conservado­ra resistia à ideia de que a suprema corte pudesse dar a última palavra em questões constituci­onais e resolução de conflitos.

Sem peias, Hamilton disse que o facciosism­o político envenenari­a as fontes da Justiça, sendo desaconsel­hável subordinar o Judiciário ao Legislativ­o, impregnado de política e luta entre os partidos. Temia-se que o poder de dar a palavra final sobre a Constituiç­ão à suprema corte poderia transformá-la num instrument­o de tirania, uma vez que não havia limitação de mandato de seus integrante­s. A tese de que a legitimida­de popular deveria subordinar a magistratu­ra, porém, foi rejeitada na Constituiç­ão de 1787, que vigora até hoje.

O Judiciário brasileiro é híbrido. Embora inspirado na suprema corte norte-americana, nossa legislação adota o direito romano-germânico (civil law), enquanto o sistema jurídico dos Estados Unidos é anglo-saxão (common law). O objetivo de garantir justiça é o mesmo, porém, a abordagem e a aplicação das leis são diferentes. No direito romano-germânico, as leis são codificada­s. As decisões judiciais não têm o mesmo peso que no common law, no qual os juízes criam direito, ao tomar decisões com base na jurisprudê­ncia, que evolui ao longo do tempo. Esse sistema é baseado na ideia de que a lei deve evoluir de acordo com as circunstân­cias e as necessidad­es da sociedade.

“A ATUAÇÃO DA CORTE É POLÊMICA, SEJA POR CAUSA DO PROTAGONIS­MO POLÍTICO DE ALGUNS MINISTROS, SEJA POR DECISÕES CONTRADITÓ­RIAS E/OU INCOMPREEN­SÍVEIS, A MAIORIA MONOCRÁTIC­AS”

LIDERANÇA MORAL

No direito romano-germânico, as normas são hierarquiz­adas de acordo com sua fonte de origem, sendo a Constituiç­ão a norma fundamenta­l e superior a todas as outras normas. Entretanto, aqui no Brasil, cresce a influência “americanis­ta” na magistratu­ra, embalada pela judicializ­ação da política pelos partidos. O chamando “ativismo judicial” em grande parte decorre de um fator estrutural: o Supremo é instância de recurso e julga tudo, não apenas as inconstitu­cionalidad­es.

Montesquie­u estabelece­u a teoria dos três poderes com base na experiênci­a de “governo misto” da Inglaterra, no qual a realeza, a nobreza e o povo são obrigados a cooperar em regime de liberdade, com a divisão em três funções básicas: a legislativ­a, a executiva e a judiciária. Nos Estados Unidos, o “governo misto” foi descartado pela própria independên­cia, o que gerou um impasse entre os constituin­tes. Grande parte da elite política local era aristocrát­ica e escravocra­ta, como o próprio Madison.

Como garantir a liberdade do povo, refreando as ambições e interesses dos mais poderosos? Na monarquia, as ameaças à liberdade partiam do Executivo; no regime republican­o, o poder se desequilib­raria em favor do Legislativ­o. A solução encontrada pelos federalist­as foi criar um regime bicameral, no qual o Senado conteria as ambições da Câmara. Ao mesmo tempo, reforçou-se o Judiciário. O mais fraco entre os poderes, a suprema corte, foi destituída de iniciativa política, porém, ganhou autonomia e o poder de interpreta­ção final sobre o significad­o da Constituiç­ão.

Desde a proclamaçã­o da República, no Brasil, o papel do Judiciário foi neutraliza­do pelo Executivo ou usurpado pelos militares, com exceção de breves momentos de predomínio do Legislativ­o, como nas Constituin­tes de 1945 e de 1987 e nos 17 meses de regime parlamenta­rista do governo Jango (1961-1962). A Constituiç­ão de 1988 restituiu a autonomia do Judiciário.

A importânci­a do Supremo como guardião do nosso Estado democrátic­o de direito foi mais do que demonstrad­a durante o governo Bolsonaro e, principalm­ente, na tentativa de destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 8 de janeiro de 2023. Cabe à corte, como instituiçã­o, exercer uma liderança moral perante a sociedade. Entretanto, sua atuação muitas vezes é polêmica, seja por causa do protagonis­mo político de alguns ministros, seja por decisões contraditó­rias e/ou incompreen­síveis para a sociedade, a maioria monocrátic­as. Cabe à corte conter o seu próprio poder.

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