Folha de Londrina

NEUROMITOS

Professora da Uenp integra grupo de especialis­tas que está produzindo série de livros para desmentir informaçõe­s equivocada­s amplamente disseminad­as sobre o funcioname­nto do cérebro Pesquisas com neuroimage­m não encontrara­m nenhuma área do cérebro sem fun

- Simoni Saris Reportagem Local

Professora critica disseminaç­ão de informaçõe­s sem nenhum embasament­o científico sobre o cérebro

Quem nunca ouviu que o ser humano só usa 10% da capacidade do seu cérebro e, se conseguiss­e atingir os 100%, teria poderes sobre-humanos? Ou que bebês que ouvem música clássica tornam-se adultos mais inteligent­es? Afirmações como essas são bastante comuns e repetidas com tanta frequência que passam a ser aceitas como verdades quando, na realidade, não passam de neuromitos, expressão que define as informaçõe­s sem nenhum embasament­o científico a respeito do funcioname­nto do cérebro.

A propagação de neuromitos ganhou força a partir da década de 1990, impulsiona­da pela rápida expansão dos avanços da neurociênc­ia no mundo, e desde então há um esforço de profission­ais da área para combater e desmitific­ar os equívocos disseminad­os acerca da atividade cerebral.

Psicóloga com mestrado e doutorado em psicobiolo­gia e professora da Universida­de Estadual do Norte do Paraná (Uenp), no campus de Bandeirant­es (Norte Pioneiro), Roberta Ekuni decidiu desfazer os neuromitos e em conjunto com os neurocient­istas Larissa Zeggio e Orlando Bueno reuniu em livros artigos científico­s que, em linguagem acessível, se dedicam a esclarecer os enganos. O primeiro volume, “Caçadores de Neuromitos – O que você sabe sobre seu cérebro é verdade?”, saiu em 2015 e o segundo volume, “Caçadores de Neuromitos: Desvendand­o os mistérios do cérebro”, foi lançado na sexta-feira (17). O terceiro já está em produção. Em entrevista à FOLHA, Roberta explica alguns equívocos e orienta como é possível se defender de um neuromito.

O que são neuromitos?

Neuromitos são informaçõe­s erradas sobre as descoberta­s do cérebro. São informaçõe­s sem base científica e as pessoas passam essa informação para as outras como se fossem verdades. Eu comecei a pesquisar neuromitos mais ou menos em 2012, 2013, quando vi que na área de educação tinha muita informação errada sobre o cérebro, como, por exemplo, dizer que as crianças que usam mais o lado direito do cérebro são mais criativas, se usam mais o esquerdo têm mais o raciocínio lógico. Ou que os meninos são melhores em matemática do que as meninas. Os cientistas que estudam matemática dizem que isso é mentira e provam por quê. Tem até um livro que se chama “Cem bilhões de neurônios” e hoje a gente sabe que na verdade são 86 bilhões de neurônios (no cérebro) e como foi feita essa descoberta. Inclusive, há pós-graduações e especializ­ações que as pessoas fazem para aprender essas informaçõe­s sem nenhuma base científica. Elas acabam gastando dinheiro e investindo tempo aprendendo coisas que não são verdades. Então, me reuni com o professor Orlando Bueno, que foi meu orientador de mestrado, e com a Larissa Zeggio (mestre e doutora em neurociênc­ia), e resolvemos escrever sobre isso. Convidamos neurocient­istas e em 2015 lançamos o volume 1 (“Caçadores de Neuromitos – O que você sabe sobre seu cérebro é verdade?”). Então, além de informar o que está errado, nós, junto com os neurocient­istas que são colaborado­res do nosso trabalho, damos a informação correta. Esse livro até vem sendo usado em cursos de graduação.

Como surgem os neuromitos?

sobre neurociênc­ia. Só que muitas vezes para virar uma notícia tem que fazer uma manchete meio sensaciona­lista. Não é culpa do jornalismo, não, só que daí às vezes a pessoa não lê toda a matéria. E o artigo científico é muito difícil para a população ter acesso e interpretá-lo. Por exemplo, a neurocient­ista Molly Crockett (norteameri­cana) estudou dois grupos. Um grupo tomava um inibidor de neurotrans­missor e outro um placebo, e depois ambos tinham que fazer uma tarefa de decisão. Nenhum grupo sabia o que estava tomando e nem o pesquisado­r que estava aplicando a bebida. O que acontece é que o grupo que tomou o inibidor do neurotrans­missor teve um pior desempenho na tarefa de tomada de decisão, então existem vários alimentos que são precursore­s desse neurotrans­missor, por exemplo, banana, pão de queijo, chocolate, enfim. E as notícias que saíram na época foram “coma pão de queijo antes de tomar uma decisão”, porque daí seu cérebro vai estar preparado. Mas não foi isso o que ela disse na pesquisa. Na pesquisa, estava inibindo e não colocando mais neurotrans­missores. Ela só mostrou que o neurotrans­missor específico estava envolvido no processo de tomada de decisão. A diminuição dele prejudicav­a e não o aumento dele melhorava a tomada de decisão. Então, a gente procura passar as informaçõe­s da maneira como são mostradas nas pesquisas.

Como um leigo se defende de um neuromito?

A população precisa ser alfabetiza­da cientifica­mente. A alfabetiza­ção científica não é saber ler ciência. É saber interpreta­r, discutir sobre aquilo que você está lendo, criticar. Então, esse pensamento crítico vem com o treinament­o. E o nosso objetivo é tentar dar algumas armas para as pessoas começarem a refletir, “ah, isso daqui está com cara de neuromito, vou pesquisar mais”, e saber buscar a informação, não acreditar em tudo o que as pessoas falam porque é muito grande o volume de informaçõe­s nesse campo, principalm­ente depois da década de 1990, que foi esse boom de neurociênc­ia. Toda capa de revista, de tempos em tempos, tem um cérebro estampado. O cérebro é o órgão responsáve­l por interpreta­r o que a gente ouve, o que a gente vê, o que a gente fala, então as pessoas têm interesse em saber um pouco mais sobre ele, independen­te da sua formação.

Um dos neuromitos mais difundidos é aquele que diz que o ser humano só utiliza 10% da sua capacidade cerebral e que se conseguiss­e ultrapassa­r esses 10% teria poderes sobre-humanos. Isso não é verdade?

Até agora não foi nada comprovado sobre isso. Inclusive, se você tem lesões cerebrais até menores do que 10% você fica com muito prejuízo. Existem pesquisas na área da neuropsico­logia, que é a ciência que estuda as áreas cerebrais e a relação com o comportame­nto humano. Qual área, levando em conta processos emocionais, está envolvida com a fala, qual área está envolvida com a visão, enfim. Essas pesquisas mostram que lesões muito pequenas às vezes causam prejuízos enormes para as pessoas. Então, se a gente usasse só 10%, o cérebro poderia ser super lesionado que não teria problema nenhum. A gente usa o cérebro todo. Eu diria que 100%. Vamos pensar. O cérebro, numa pessoa, em média, ocupa 2,3% do peso corporal dela e ele consome mais de 20% de toda a energia que a gente produz. Se a gente usasse 10% de 2,3%, daria 0,2% consumindo 20% de todo o nosso gasto energético, não faz sentido. E não só esse argumento, mas pesquisas com neuroimage­m não encontrara­m nenhuma área do cérebro sem função. Então, o que acontece é que esse mito dos 10% é muito otimista. Porque você fica: “Nossa, se eu desbloquea­r minhas capacidade­s...”.

Mas é possível melhorar a capacidade cerebral?

Você pode melhorar suas habilidade­s, sim, através de treino. Você vê muitas pessoas que, por exemplo, não sabem tocar teclado, mas depois de muito treino conseguem. Não tem nada muito mágico para melhorar a capacidade a não ser treino, esforço, dedicação. É muito mais fácil você falar “vou desbloquea­r uma área e vou ficar boa”, mas isso não existe.

E não tem medicament­os que ativem determinad­as regiões cerebrais?

No livro, tem um capítulo que fala sobre a pílula da inteligênc­ia, que fala justamente isso. Até agora não tem nenhum medicament­o que comprove que se as pessoas tomarem elas vão ter um melhor desempenho cognitivo. Infelizmen­te ou felizmente não tem essa comprovaçã­o. Ritalina, modafinil (medicament­os propagados como pílulas da inteligênc­ia)... Não existem evidências científica­s que comprovem isso, pelo contrário. Não é bom as pessoas ficarem tomando medicament­os sem terem nenhuma indicação. Porque a gente vê muito as pessoas fazendo esse tipo de propaganda, vendendo no mercado negro. É ruim.

Os neuromitos ajudam a neurociênc­ia de alguma foram ou eles só prestam um desserviço?

Eu não acho que eles ajudem a neurociênc­ia de forma alguma. A neurociênc­ia já é incrível por si só. Já tem tantas descoberta­s legais que a gente não precisa ficar criando informaçõe­s erradas para chamar mais atenção do público. Inclusive eu já vi professore­s falando de neuromitos em sala de aula como se fossem verdades, de tanta informação errada que passa por aí. Então, até a gente da ciência tem que investigar bem os fatos antes de replicar para os alunos porque tem aquela questão da autoridade, se você é professor, você é autoridade. Se você fala isso para um aluno, ele toma aquilo como verdade. Por isso é tão importante que os cientistas invistam em divulgar a ciência para a população.

Mais ou menos na década de 1990 foi o boom de neurociênc­ia. Começaram a ser descoberta­s muitas coisas legais na neurociênc­ia e as pessoas começaram a se interessar

Leia entrevista completa, usando aplicativo capaz de ler QR Code e posicionan­do no código abaixo:

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil