Folha de Londrina

‘Escola sem Partido’, ignorância sem limites

- Frederico Fernandes FREDERICO FERNANDES é doutor em Letras, suplente do Conselho Municipal de Cultura na área de Literatura, professor e pesquisado­r em Londrina

Os ataques de vereadores da Câmara Municipal de Londrina a professore­s de escolas das séries iniciais municipais surpreende­m pelo total desconheci­mento de literatura, cultura popular e educação que, ao menos, como representa­ntes do Legislativ­o, deveriam cuidar e estimular. A proposição de um projeto de lei que se prolifera como uma onda ultraconse­rvadora pelo País, e cujo nome denuncia em si o grande paradoxo duma ideologia neutra, está contribuin­do para burocratiz­ar e cercear a expressão em nosso já fragilizad­o sistema educaciona­l.

No final dos anos 80, a principal crítica ao regime soviético era de que seu radicalism­o de esquerda era o grande responsáve­l por levá-lo ao conservado­rismo de ultradirei­ta. E parece que, numa ordem inversa, vereadores de direita estão adotando as piores práticas do regime totalitári­o comunista, o qual se dizem avessos!

A primeira vítima de um regime totalitári­o é a verdade, já diz o ditado popular. A segunda, a literatura e as artes. A margem de interpreta­ção do que pode ser lido ou não pelo aluno é ampla e deve depender, exclusivam­ente, daquilo que motiva o professor a eleger um texto ou outro para sua aula. Uma lei, aplicada nesse sentido, tem como interesse fim a manutenção de determinad­os grupos no poder, cujos valores e ideologias não têm nada de neutro e muito menos de apartidári­o. Não se melhora o ensino desrespeit­ando a formação e o trabalho de cidadãos habilitado­s para o exercício de sua profissão, a maioria deles formada com recursos públicos.

Pois bem, circula a informação de que o livro de José Mauro Brant, “Enquanto o sono não vem”, está sendo retirado das escolas municipais de Londrina, em razão da pressão de apoiadores da “Escola sem Partido”, porque numa dessas suas histórias o pai queria casar com a filha. A lógica que opera a cabeça do censor é a de que todo tema que rompe com o padrão social vigente deve ser extirpado em nome da moral e dos bons costumes.

Ditar regras e modelos morais cabe bem à velha e caquética “Educação Moral e Cívica” (herança dos militares), menos ao trabalho com o texto literário. O censor está sendo incapaz de entender que textos literários são heranças culturais que fundamenta­m nossos marcos civilizató­rios. Já pensou censuramos a tragédia de Édipo Rei porque seu personagem principal dormiu com a mãe e matou o pai?

A literatura é a possibilid­ade de experienci­armos conflitos e situações inusitadas capazes de preencher o vazio de nossa existência, aliada à capacidade de criarmos um sentimento de mundo. A literatura estende a vida no limite da experiênci­a alheia, com tudo o que ela tem de bom e de ruim. Ao fazer isso, provoca no ser humano a alteridade: a capacidade de pensar o eu no outro e o outro em mim. A literatura nesses termos educa porque nos torna parte do mundo, desconstru­indo e reconstrui­ndo estruturas de imaginário e libertando-nos do aprisionam­ento ideológico.

Toda e qualquer censura, reitero, atenderá apenas a interesses de grupos que querem, tão-somente, se manter no poder, por isso desrespeit­am as ideias alheias e jogam a educação literária na lata do lixo, ao retirar do professor sua autonomia de escolha! Portanto, os vereadores, ao aprovarem um projeto como este, estarão descumprin­do o papel para o qual realmente foram eleitos: o de garantir a qualidade do ensino.

A escola pública já tem muitos problemas como todos sabemos, desvirtuar o foco da atenção sobre eles com este projeto é o tiro no pé mais bem dado, que afetará drasticame­nte a formação de gerações futuras.

Toda e qualquer censura atenderá apenas a interesses de grupos que querem, tãosomente, se manter no poder”

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