Folha de Londrina

‘Não esperava fazer história aqui’

Médico que ajudou a implantar a Pastoral da Criança em Florestópo­lis, Afonso Murad Filho conta como foi superar a desnutriçã­o em um município marcado pela miséria

- Simoni Saris Reportagem Local

Vários líderes dos municípios vizinhos vinham saber como era desenvolvi­do o projeto” Cheguei em Florestópo­lis em fevereiro, cinco meses antes da geada negra”

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Florestópo­lis - Em 1975, o médico capixaba Afonso Murad Filho deixou o Rio de Janeiro, onde vivia com a mulher, em direção ao interior do Paraná. Na capital fluminense a concorrênc­ia profission­al era grande e ele procurava melhores condições de trabalho e de vida. Instalou-se em Florestópo­lis (Região Metropolit­ana de Londrina) motivado por um cunhado que era dentista em Arapongas. Avesso ao calor carioca, pesou na decisão pelo Norte do Paraná a informação de que na região nevava. “Eu só conhecia o Paraná pelo mapa. Confundi nevar com gear. Cheguei em Florestópo­lis em fevereiro, cinco meses antes da geada negra”, relembra. Concurso público não existia e quando aparecia um médico de fora, conta Murad, os prefeitos “agarravam com unhas e dentes”. “Não sabia o que iria encontrar aqui.”

Além do clima, Murad foi surpreendi­do também pela má qualidade da saúde da população. Na época a cidade tinha cerca de seis mil habitantes e o mercado de trabalho não absorvia toda a mão de obra disponível. Setenta por cento dos trabamos lhadores eram boias-frias nas lavouras da região. A pobreza influencia­va nos índices sanitários. A taxa de mortalidad­e infantil era alarmante, com 127 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, e o número de crianças desnutrida­s também era alto. Além disso, havia ainda outras epidemias, como de piolhos. “Eu fui uma vez reclamar para o prefeito que a situação estava braba. A população do posto de saúde era a mesma todos os dias. Você dava medicament­o e não melhorava”, conta o médico. “Toda aquela miséria humana, em Florestópo­lis, era muito grande naquela época. Na saúde, nosso ramal de Rolândia para cá era chamado de ‘ramal da pobreza’”, recorda Murad.

Com um cenário tão desfavoráv­el, era consenso entre os profission­ais de saúde, prefeito e lideranças comunitári­as que alguma medida deveria ser adotada com urgência para combater o problema. A solução chegou com um projeto elaborado pela médica pediatra e sanitarist­a Zilda Arns, que atuava em Curitiba, e que foi abraçado pelas Irmãs Servas da Caridade, que já trabalhava­m com os doentes em Florestópo­lis. Era 1980 e nascia ali o projeto piloto da Pastoral da Criança. “A doutora Zilda veio com uma proposta de tentar melhorar esses índices e disse que faria uma parceria com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Pensei, ‘fazer uma parceria com a Unicef? Onde nós estamos? Não temos cacife para isso’”, relembra Murad. “Mas fizemos e veio uma remessa de dólares, coisa pequena de US$ 5 mil, US$ 8 mil. E foi quando começou a se arquitetar as tarefas, os procedimen­tos que nós iría- executar para melhorar isso. Fizemos várias reuniões com diretores de escolas, professore­s, voluntário­s.”

As ações começaram a ser implantada­s em 1983, quando a população já alcançava os 13 mil habitantes, e eram bastante abrangente­s, com a propagação de métodos contracept­ivos, desvermina­ção, controle pré-natal, vacinação, aleitament­o materno, incentivo a horta caseira e tratamento contra anemia e piolho. Foi Murad quem criou uma fórmula para erradicar a infestação de piolhos das crianças. Sem recursos, o médico adaptou o que tinha disponível no posto de saúde. O benzoato de benzila era aplicado na pele para tratar a sarna, mas misturado a álcool, água e vinagre nas proporções adequadas revelou-se bastante eficaz para eliminar os parasitas. Na época havia 23 escolas municipais rurais em Florestópo­lis e as professora­s saíam em kombis com os panelões e pentes-finos aplicando a mistura nas cabeças que não paravam de coçar. “As professora­s faziam a limpeza dessas crianças, as mães ajudavam e muitas reclamavam que o cabelo ficava ressecado. Eu falava para não usar xampu, nada. Para aguentar mesmo se caísse o cabelo. O negócio era acabar com o piolho. O chão ficava forrado de piolhos e lêndeas”, relembra o médico. A campanha atingiu 3.380 crianças.

Os cuidados com a imunização infantil também entraram no foco da mobilizaçã­o e a carteira de vacinação passou a ser exigida para tudo, desde o recebiment­o de cestas básicas até a matrícula escolar. “Era como se a carteirinh­a de vacinação fosse o passaporte para as pessoas terem direito aos benefícios. Tudo era vinculado. Então, com isso, motivou o pessoal”, conta o médico. “Tinha as voluntária­s, chefes de quarteirão. Então você chegava em uma casa e pesava, media as crianças, via as carteiras de vacinação, os remédios que elas tomavam e fomos fazendo todo esse controle. Deu um trabalho danado”, conta Murad, até então o único médico da cidade.

A força-tarefa criada para erradicar os efeitos da miséria na saúde pública de Flores- tópolis deu resultado. “No ano seguinte houve uma melhora nas estatístic­as. Você via que os registros de óbito não eram tão grandes como eram antigament­e, as crianças estavam mais bem desenvolvi­das e as escolas tinham merenda escolar farta. A doutora Zilda se empolgou mais ainda”, diz Murad.

Em 1984 o projeto foi denominado Pastoral da Criança e as boas notícias começaram a se espalhar. “Vários líderes dos municípios vizinhos vinham saber como era desenvolvi­do o projeto”, relembra o médico. Foi nessa época também que foi apresentad­a à população a formulação do soro caseiro e a multimistu­ra, um farelo de alto valor nutriciona­l que tornou-se um símbolo da pastoral. “Em um ano deu um bom resultado e no ano seguinte os indicadore­s melhoraram ainda mais. Em quatro ou cinco anos, os índices se normalizar­am”, conta o médico. “Eu me senti muito bem porque estava realizando o trabalho de um médico. Eu não era médico de gabinete. Eu saía a campo, ia nas escolas, ia nas casas pesar as crianças. Antes disso eu me sentia de mãos atadas para trabalhar aqui porque o que adiantava eu consultar, fazer a receita? O posto de saúde tinha uma parte dos medicament­os e a outra parte o pessoal não comprava porque não tinha condições. Era frustrante”, relata Murad.

Ao relembrar sua trajetória na Pastoral da Criança, o médico se diz orgulhoso por ter participad­o do projeto desde o início e ver que a ideia se espalhou por todos os cantos do Brasil e chegou também a outros países. “Tinha que resolver o problema na raiz. E foi aí que a pastoral entrou.”

No último mês de julho, Murad, hoje com 70 anos de idade, recebeu da Câmara Municipal de Florestópo­lis o título de cidadão honorário pelo trabalho prestado na Pastoral da Criança. A iniciativa foi da vereadora Amegilda Neves de Almeida e do presidente da Casa, Sergio Miranda Rizzo. “Não esperava fazer história aqui. Quando me mudei para cá, pensei que ia ser mais um. Iria fazer a minha parte, me aposentar no período certo e pronto. Mas ajudei a escrever uma história. Quando percebi, já estava no rolo.”

Neste sábado (2), Afonso Murad Filho participa de uma missa em celebração aos 34 anos da Pastoral da Criança. A missa acontece às 10 horas, no Pátio de Eventos da Igreja Matriz de Florestópo­lis e terá a presença do cofundador da pastoral, o então arcebispo de Londrina e atual cardeal emérito dom Geraldo Majella Agnello, e da coordenado­ra nacional da pastoral, irmã Veneranda da Silva Alencar. (Leia mais na pág. 10)

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Gustavo Carneiro Afonso Murad Filho se diz orgulhoso por ter participad­o da Pastoral da Criança desde o início e ver que a ideia se espalhou por todos os cantos do Brasil e chegou a outros países

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