Folha de Londrina

A vida em concerto

Filme ‘João, o Maestro’ conta a trajetória de um grande pianista que perdeu o movimento das mãos, mas continua a fazer música

- Marian Trigueiros Reportagem Local

Se existe um pesadelo para um pianista, é não ter mais os movimentos dos dedos e mãos. E foi o que aconteceu com João Carlos Martins. “A busca pelo perfeccion­ismo foi o que me levou para o melhor e o pior da vida. Houve época em que ficava 14 horas tocando sem parar. Eu ajudei a prejudicar minhas mãos e as perdi para o piano. Apesar de tudo o que aconteceu, não me arrependo”, diz o hoje maestro, em entrevista exclusiva à FOLHA. Aos 77 anos, sua história acaba de virar filme, “João, o Maestro”, cuja estreia nacional aconteceu no último dia 17 de agosto e segue em cartaz em Londrina. Com roteiro e direção de Mauro Lima, produção da LC Barreto, o longa de quase duas horas retrata, principalm­ente, a vida musical do pianista brasileiro, considerad­o um dos melhores do mundo ainda muito jovem. A trilha inteira do filme são gravações do próprio, um dos poucos a registrar toda a obra de Johann Sebastian Bach tornando-se uma referência ao lado do lendário Glenn Gould.

João Carlos Martins teve uma vida marcada por sucessivos dramas, desses que não parecem ser reais. Mas também teve momentos de glória. Um prato cheio para um filme, que já havia sido sondado pelo diretor Clint Eastwood, mas que o cineasta Bruno Barreto não deixou passar. Martins começou a tocar criança, aos 8 anos de idade e aos 11 anos já estudava seis horas por dia. Aos 16, ele começou a sentir os primeiros efeitos do que, alguns anos depois, se transforma­ria em uma LER (Lesão por Esforço Repetitivo). Aos 18 anos teve um acidente durante um jogo de futebol em Nova York, que compromete­u a mão direita. “Nessa época, parei e fui trabalhar em um banco como office boy”. Mas logo retornou às atividades e, em pouco tempo, sua vida seria traçada, definitiva­mente, pela música. Aos 19 anos estreou no Carnegie Hall (Nova Iorque) e, desde então, tocou nas mais importante­s salas e concertos em vários países, consagrand­o-se como um dos mais respeitado­s pianistas do mundo.

Porém, com apenas 27 anos começaria uma luta contra si mesmo. Fez a primeira cirurgia na mão de muitas que viriam. “Nessa época, pensei em me matar. Se eu tivesse maturidade, teria parado de tocar nessa idade e começado uma nova carreira”, desabafa. Não parou. Voltou à ativa e mais obstinado que nunca, numa atitude que ele prefere nomear como perfeccion­ismo. “Não era apenas por vaidade, era algo maior. Acredito que o sucesso de alguém seja 2% de dom divino e 98% de dedicação e treino, como um atleta. Eu memorizava todas as obras”. Não bastassem os problemas que surgiam ano a ano, em 1995, sofreu um assalto durante a gravação de um disco na Bulgária resultando em uma lesão cerebral que afetou a mão esquerda. Em 2002, descobriu um tumor na mesma mão. “Foi o momento de deixar para trás o piano de vez. Fiz meu último concerto em Londres e beijei o piano ao final, pois sabia que, em poucos dias, faria uma cirurgia para ‘perder’ a mão”. Foram mais de 6 mil concertos ao piano realizados.

O pianista passou por 23 cirurgias ao longo da vida e, até o final do ano, deve realizar mais duas para colocar uma placa de aço nos dedos. “É uma tentativa para conseguir tocar com os dois dedos que sobraram. Se antes eu tocava 21 notas por segundo, agora, luto para a cada segundo tocar uma única nota”, brinca. A falta dos movimentos, no entanto, não paralisara­m as atividades, pelo contrário, se reinventou. “Tive de reaprender os valores da vida. E descobri, no meu trabalho social frente à Orquestra Bachiana Jovem, uma nova carreira, aos 64 anos de idade.” Todas essas fases são retratadas no filme pelo pequeno Davi Campolongo, o ator de 11 anos selecionad­o entre 50 crianças para viver o maestro na infância, Rodrigo Pandolfo, que vive o músico dos 15 aos 30, e Alexandre Nero, que faz o pianista dos 35 anos até os dias de hoje. “Eles foram brilhantes. Me emocionei do início ao fim”, confessa.

O FILME

Martins conta que o diretor o procurou antes de escrever o roteiro para uma conversa. “Nesse encontro, já havia uma ideia de formato. E também o deixei livre para criar e dirigir, porque não se tratava de uma biografia. Depois do roteiro pronto, só fiz dois pedidos: que a trilha do filme fosse inteiramen­te minha e que eu pudesse acompanhar a gravação do dublê de mãos nas cenas ao piano. Queria que fosse uma sincronia perfeita. E ficou”. O diretor se baseou em biografias já existentes sobre o pianista, documentár­ios e arquivos de jornais. “Na parte musical representa 100% do que aconteceu. Já a dramaturgi­a, foi baseada na minha vida pessoal e contou com a criativida­de do diretor. Há algumas mudanças que foram adaptadas para não precisar desenvolve­r mais personagen­s ou filmar em outras localidade­s”, disse, com relação aos casamentos ou da primeira relação sexual em um bordel.

Se o filme não é exatamente uma biografia, o maestro destaca que sentiu de não terem entrado algumas histórias de sua vida. “Há momentos únicos como um dos últimos concertos em que toquei com dedeiras de aço ou quando toquei em Cuba para a família Castro durante a invasão da Bahia dos Portos. Mas, não tem como entrar tudo”. Outro episódio não mostrado foi sobre o ano em que atuou na política como secretário de cultura no Governo de Paulo Maluf e se envolveu em um escândalo de desvio de dinheiro. “Não sou herói de nada, mas são 70 anos da minha vida dedicados à música. Não era o caso de macular uma história por causa de um erro, de um único ano na política”, defende o maestro. Outras tantas histórias ficaram de fora e, especulaçõ­es dão conta de que, para o próximo ano, será rodada uma minissérie baseada na vida e obra de João Carlos Martins.

Ao longo de seis décadas de carreira, o maestro gravou 30 discos dedicados à obra completa de Bach, boa parte deles considerad­os essenciais na discografi­a de música erudita, além de Mozart, Chopin e uma gravação do “Concerto Para Mão Esquerda”, de Maurice Ravel. À frente da Orquestra Bachianas Filarmônic­a Sesi São Paulo, foram mais de 1,5 mil concertos para 15 milhões de pessoas nos últimos 12 anos.

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Fernando Mucci/ Divulgação Alexandre Nero como João Carlos Martins: a música é personagem vital no filme e uma dádiva aos ouvidos do espectador
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Maestro João Carlos Martins: “Não sou herói de nada, mas são 70 anos da minha vida dedicados à música”

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