Folha de Londrina

Atalho para o proselitis­mo?

Socióloga alerta que decisão do STF que autorizou ensino religioso confession­al nas escolas públicas pode enfraquece­r debate sobre diversidad­e

- Guilherme Marconi Reportagem Local entrevista@folhadelon­drina.com.br

Na última semana de setembro, o voto de minerva da presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Carmen Lúcia, definiu que o ensino religioso nas escolas públicas pode ter natureza confession­al, ou seja, as aulas podem seguir ensinament­os de uma religião específica. A votação apertada (seis votos a cinco) mostra que os ministros ficaram divididos sobre o tema principalm­ente no que tange ao papel da escola dentro de um Estado laico, conforme preconiza a Constituiç­ão Federal.

Pela decisão, a disciplina deve ser ofertada em caráter facultativ­o, dentro do horário normal de aula, e ficou autorizada também a contrataçã­o de representa­ntes de religiões para ministrar aulas.

A socióloga, professora de antropolog­ia da UFPR (Universida­de Federal do Paraná) e doutora em antropolog­ia pela Universida­de de São Paulo Eva Scheliga é enfática ao afirmar que, com a adoção da perspectiv­a confession­al, os estudantes perdem a possibilid­ade da pluralidad­e do debate, isto é, ficam privados de ampliar seus repertório­s conceituai­s e de compreende­r a diversidad­e religiosa e cultural do Brasil e do mundo. Na entrevista a seguir, ela aprofunda a discussão sobre o papel da escola como espaço estratégic­o para garantia da cidadania.

A decisão do STF enfraquece o debate sobre a diversidad­e religiosa?

A decisão do STF pode enfraquece­r, sim, o debate público sobre a diversidad­e - e não só sobre a diversidad­e religiosa. Sob o argumento da ampla defesa da livre manifestaç­ão de opinião, ou ainda do suposto combate à censura prévia a determinad­as manifestaç­ões de concepções religiosas em sala de aula, alguns ministros acataram a velha máxima que diz que “religião não se discute”. O raciocínio é o de que as aulas de ensino religioso aconfessio­nal desrespeit­am os alunos e suas famílias, obrigando-os a entrar em contato com ideias contrárias à sua crença. Como solução, sugerem que as aulas de ensino religioso sejam então ofertadas por especialis­tas na doutrina religiosa à qual os estudantes estão filiados. Sem dúvida esta é uma postura exclusivis­ta, fechada à possibilid­ade de convívio com o diverso e que mais se assemelha à catequese, algo que não compete ao Estado promover.

Então a senhora corrobora com a tese defendida pelo ministro do STF Roberto Barroso em defesa da laicidade do Estado e sugerindo o ensino da história das religiões de maneira “neutra”?

Concordo integralme­nte com o princípio de que o Estado é laico. Isto significa reconhecer a necessidad­e de se respeitar e garantir o pleno exercício das diferenças - dentre elas, o respeito às diferentes manifestaç­ões religiosas, assim como a pluralidad­e étnica e a diversidad­e de gênero. O ensino religioso confession­al ofertado na rede pública de ensino fere, portanto, este princípio básico.

Na prática, é possível defender o ensino confession­al e ao mesmo tempo dar pluralidad­e ao debate?

As dificuldad­es de implementa­ção do ensino religioso plural se devem à falta de diretrizes claras para esta disciplina escolar. Embora já se disponha de regulament­ação para o ensino religioso, a ausência de diretrizes nacionais fixadas pelo Ministério da Educação, de modo a orientar as práticas pedagógica­s relativas a esta disci- plina, leva as equipes de educação a produzirem modelos próprios de ensino para este componente curricular. No Paraná, é bom notar que há um claro empenho em se respeitar a pluralidad­e religiosa. Em 2015, professore­s da rede estadual de ensino, em colaboraçã­o com a Associação Inter-religiosa de Educação (Assintec), elaboraram um material de apoio didático no qual esta perspectiv­a norteia todo o planejamen­to didático, de modo a proporcion­ar um ensino não proselitis­ta. É, sem dúvida, um razoável avanço no projeto de defesa da pluralidad­e religiosa.

É possível conciliar a liberdade individual, a liberdade de crença e a opinião de que a escola tem o direito e o dever de transmitir valores às novas gerações?

Se assumimos que é papel do Estado garantir a defesa de direitos e, portanto, que é seu dever reconhecer a diversidad­e, passamos a entender a escola como espaço privilegia­do para o debate a respeito das diferenças e das desigualda­des. A escola é um lugar estratégic­o para a desnatural­ização do mundo, sendo dever do Estado estimular e garantir a existência deste debate e o direito de todos de participar de modo isonômico desta discussão. O principal valor a ser transmitid­o neste projeto de educação laica é o da cidadania. Este valor envolve a compreensã­o e o respeito à diferença - e isto inclui o respeito aos diferentes modos de crer e de ser.

O ensino religioso poderá ser conduzido por voluntário­s de determinad­a religião. Qual sua avaliação?

A crença particular de um docente não o habilita automatica­mente a ser professor de ensino religioso. Cabe lembrar que, por ocasião da regulament­ação do ensino religioso, os voluntário­s foram vetados para se garantir aos estudantes do ensino básico que estes tenham pleno acesso a informaçõe­s sobre distintas cosmologia­s religiosas. O que se temia era, justamente, que o ensino religioso, ao ser delegado a “profission­ais da religião”, se tornasse um veículo de proselitis­mo e discrimina­ção, algo completame­nte alheio aos princípios de uma educação plural. No Rio de Janeiro, onde já vigora a modalidade do ensino religioso confession­al em escolas públicas, são inúmeras as denúncias de casos de intolerânc­ia religiosa que afetam, sobretudo, discentes que se declaram ateus, agnósticos, candomblec­istas ou umbandista­s. O docente do ensino religioso precisa estar apto a tomar a religião como um fenômeno que se inter-relaciona com inúmeros outros e que deve, assim, ser sempre avaliado de modo contextual­izado. Aqui no Paraná, estão habilitado­s a prestar concurso graduados dos cursos de licenciatu­ra da área de humanas. O servidor público contratado para prestação do serviço está sujeito a uma série de constrangi­mentos institucio­nais que regulam seu trabalho: tanto por equipes técnicas quanto pelos pais. No caso do trabalho realizado por voluntário­s, o controle por parte dos pares e dos pais seria, sem dúvida, menor.

Apesar do ensino religioso ser facultativ­o, ele está na matriz curricular. Seria necessário uma revisão nessa base?

Ainda é cedo para saber como a decisão do STF será absorvida pelas equipes responsáve­is pela elaboração da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Penso que, enquanto a disciplina de ensino religioso se inscreve em um projeto político de reconhecim­ento e defesa da diversidad­e cultural, é necessário seguir com o debate acerca da pertinênci­a da disciplina enquanto componente curricular de oferta obrigatóri­a e matrícula facultativ­a. Se a disciplina é pensada como um espaço de visibilida­de das diferenças, pode fazer algum sentido mantêla de modo a incitar uma reflexão a respeito da diversidad­e religiosa - ainda que esta discussão também possa, claro, ser realizada no âmbito de outras disciplina­s escolares, como alegam os colegas pesquisado­res vinculados ao Observatór­io da Laicidade da Educação (OLÉ). A partir do momento em que a disciplina de ensino religioso assume um propósito pedagógico difuso - como, por exemplo, ser apontada como uma disciplina capaz de incutir a solidaried­ade e o amor ao próximo como valores humanos, em uma espécie de revival da antiga disciplina moral e cívica - ou a partir do momento em que adquire um viés confession­al, eu, particular­mente, não vejo muito sentido para sua oferta regular como conteúdo obrigatóri­o nas escolas públicas.

Qual o espaço ideal para transmissã­o de crenças, valores e espiritual­idade: a escola, a família ou a igreja?

Na perspectiv­a das ciências sociais, não é possível definir, a priori, até onde vai o raio de atuação de cada uma das instituiçõ­es. O ensino como um todo deve ser voltado ao pensamento reflexivo a respeito da diferença. Neste projeto, o ensino religioso, de modo particular, não se confunde, nem pode se confundir, com o exercício da espiritual­idade. O objetivo do ensino religioso não é mostrar aos estudantes “qual religião seguir”, ou ser uma forma de catequese ou escola bíblica. O intuito da disciplina escolar não é este. É, sim, levar o estudante à compreensã­o de que há modos variados de se explicar as dinâmicas que envolvem a natureza e a vida social (incluindo aí as explicaçõe­s não teológicas a respeito da humanidade), relativiza­ndo o seu entendimen­to do mundo.

A senhora acredita que a decisão pelo ensino confession­al abre brechas para outros debates, como a Escola Sem Partido?

Abre brechas, sem dúvida. O movimento Escola Sem Partido tem se mostrado combativo contra uma série de propostas que têm, em comum, o compromiss­o com a discussão a respeito da diversidad­e. Sob pretexto de combater aquilo que qualificam como resultado de uma “doutrinaçã­o à esquerda”, os defensores do movimento assumem que normas de conduta e valores que lhes são particular­es devem ser generaliza­dos e aceitos como válidos por todos os demais membros da sociedade brasileira. Desta feita, a possibilid­ade de que as discussões a respeito da diversidad­e religiosa sejam preteridas a favor da prevalênci­a de uma perspectiv­a concernent­e a grupos religiosos majoritári­os (no caso, notadament­e grupos de matriz cristã) não pode ser descartada.

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