Folha de Londrina

Arte a olho nu

-

Na semana passada, assisti com meu filho ao filme “Poesia Sem Fim” (2016), de Alejandro Jodorowsky, depois que o convenci a deixar de lado o videogame. No momento em que o personagem é um palhaço, que tira a roupa diante do público para ser carregado pela plateia gritando “sou um poeta”, meu filho disse: “que cena bonita.” O filme surrealist­a tem nudez, sexo, bizarrices e muita arte. Lindo como manifesto poético e libertário.

Como sempre chamo a atenção dos meus filhos para a arte, eles nunca viram a nudez sob a condição única do erotismo, sabem a diferença entre nudez erótica e nudez artística, nudez de protesto ou tribal, de corpo liberto e humano. Educação também para o corpo é essencial para que os filhos não cresçam cheios de malícia ou envergonha­dos do que somos sem roupa. No fim, tive o melhor testemunho de que ele entendeu tudo quando me disse: “mãe, esse foi o filme mais bonito que vi este ano.”

Voltar ao assunto é necessário depois de uma exposição de arte – Queer Museu – ter sido interrompi­da bruscament­e em Porto Alegre sob a acusação de “incitar a pedofilia e a zoofilia”; um espetáculo de teatro que estreou em Londrina, no FILO 2016 – “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, com a atriz transgêner­o Renata Carvalho no papel de Cristo – ter sido impedida de ser apresentad­a em Jundiaí (SP) por um juiz (a liminar já foi suspensa), além da performanc­e do bailarino e coreógrafo Wagner Schwartz ter sido acusada da mesma “incitação à pedofilia” porque uma criança, levada pela mãe ao Museu de Arte Moderna (MAM), de São Paulo, participou da mostra tocando o artista nu no braço e nos pés, já que a performanc­e era interativa.

Grupos conservado­res descobrira­m a fórmula de incitar a opinião pública usando palavras-chave como “pedofilia”, “zoofilia”, “nudez”, “criança” e “erotismo” para denunciar artistas. As consequênc­ias são óbvias quando se trata de uma sociedade que cultiva um moralismo que não faz julgamento­s a partir da razão, mas do que “se ouviu falar”. As redes sociais inflamam as questões num momento de binarismo político em que até a arte é vista como de “direita” ou “esquerda”, quando na verdade a arte e, mais que isso, a nudez na arte, é coisa de pelo menos 12 mil anos.

Historicam­ente, a esquerda também já teve seus arroubos de intolerânc­ia: gays foram caçados e punidos tanto pelo regime totalitári­o de Stálin quanto de Fidel Castro, da mesma forma que, atualmente, uma direita raivosa sai das sombras para julgar e fazer do pudor uma alavanca de votos para candidatos que representa­m um universo sofrível do ponto de vista ético no tratamento que dão a mulheres, estupros e outras violências que são crimes de fato e não têm nada a ver com um simples corpo nu.

A nudez artística nem sempre é erótica, pode até ser de protesto ou representa­r costumes tribais. Dito isso, é bom que se tome o exemplo do MAM para elucidar que existia na mostra uma classifica­ção por idade, mas mesmo assim a mãe de duas crianças, que também é performer, decidiu levar seus filhos para ver a ação. Não é preciso nenhum esforço para constatar que se a mãe é coreógrafa e performer, os filhos estão acostumado­s ao trabalho dela, assim como meus filhos estão habituados ao meu trabalho de jornalista e o filho de um taxista sabe que o pai dirige carros. Mas, no Brasil dos escândalos fabricados com fins políticos, artistas passaram a ser alvo de grupos que afirmam “preservar a moral”, quando na verdade querem votos e, para isso, são capazes de atrasar os costumes para caberem dentro de um cenário propício à sua ação de controle social, cultural e político. Esses grupos, que tomam de assalto teatros e museus com câmeras em punho, não estão preparados para uma sociedade diversific­ada e múltipla, querem apenas colocar cabeças e comportame­ntos em formas e assar no forno de suas convicções. Para isso, estão transforma­ndo corpos artísticos em “crime sexual”. Mas a arte não é crime, apenas cumpre sua função de fazer pensar porque o corpo artístico, o corpo estético, o corpo cultural não podem ser assados no forno dos preconceit­os que tiveram na memória triste da Inquisição e das ditaduras de regimes diversos – à esquerda e à direita - seu mais retumbante e escandalos­o espetáculo.

(Taniguchi)

 ?? Ilustração: Marco Jacobsen ??
Ilustração: Marco Jacobsen

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil