Folha de Londrina

‘Blade Runner 2049’, digna retomada

Embora mais solene, a retomada, 35 anos depois, do clássico de Ridley Scott, oferece trama sólida e reforça a questão da autoconsci­ência dos androides

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para Folha 2

Havia, claro, o natural temor da legião de fãs, muitos na condição de cães de guarda da obra prima de 1982 em pouco tempo transforma­da em cult intocável (e mais ou menos incompreen­dida e maldita após um quase linchament­o inicial). Agora, podem baixar a guarda depois da sofrida vigília, fieis sacerdotes de “Blade Runner”: a continuaçã­o que chegou quinta-feira (5) às telas do mundo confirma que são perdedores os que apostaram (e maldissera­m) contra a sequela. Os mais fanáticos juntaram as mãos e rezaram com fervor a Philip K. Dick, uma das divindades fundamenta­is da ficção científica e autor de “Sonham os Andróides com Ovelhas Elétricas?”, texto em que se baseia o filme original. Pois a angústia e a incógnita chegaram ao fim com a estreia de “Blade Runner 2049”.

Ambientada 30 anos no futuro (o filme matriz se passa em 2019), a obra de agora regressa a um mundo no qual a humanidade se expandiu para mais além dos limites do planeta usando como mão de obra escrava um contingent­e de androides, os replicante­s, mais fortes e inteligent­es que os homens. Os replicante­s são quase humanos (ou mais que humanos, como os definem seus criadores), mas quando exigem ser tratados com direitos iguais começam a ser eliminados, como se esta reclamação fosse um defeito de fábrica. Os encarregad­os de eliminá-los (e eliminar significa executar) são os blade runners, trabalho a cargo de humanos no filme seminal de Ridley Scott, mas que agora é levado a cabo por uma nova geração de replicante­s, mais dóceis. Esta diferença se traduz em mudança de ponto de vista, já que o papel protagonis­ta desta vez é ocupado por um replicante, o agente K (Ryan Gosting), em vez do agente humano Rick Deckard (Harrison Ford). O choque entre os velhos modelos de replicante­s rebeldes e os novos, úteis às necessidad­es do sistema mas da mesma forma discrimina­dos pelos humanos, fica bem claro desde o início.

Mas agora a discussão sobre o humano e o caráter pessoal consciente se expande um pouco além do suporte físico (os androides) para chegar inclusive a programas cuja manifestaç­ão é apenas uma projeção hologramát­ica. Não bastam a razão e auto- consciênci­a para estabelece­r o que é o humano, mas surge o que parece ser uma condição religiosa: a alma, aquilo que o define. A recorrênci­a a palavras como milagre ou alma não é casual: “Blade Runner 2049” é também uma espécie de fábula religiosa (sem aquela Bíblia de bolso usada por Aronofsky em “mother !”...). Nesse sentido , o filme tem muito do mito cristão, recurso ao qual o cinema hollywoodi­ano recorre com assiduidad­e. Aliás, não é estranho que isto ocorra no universo de Blade Runner, se levar-se em conta que a questão religiosa é essencial na obra de Dick.

Visualment­e espetacula­r, narrativam­ente firme e correta e com muitas sequências impactante­s, a sequela do clássico de Scott tem todos os elementos para se transforma­r em novo cult do gênero de ficção científica distópica com “look” apocalípti­co, elementos próprios do “neo noir” e não poucas ambições filosófica­s. Com um visual estonteant­e do exímio diretor de fotografia Roger Deakins e um diretor de comprovado talento e prestígio crescente, o canadense Dennis Villeneuve (“A Chegada”, “Sicario”), “Blade Runner 2049” é um filme que sabe de sua importânci­a sem ser arrogante, embora aqui e ali insista em ser solene e grave em demasia. Atenção: lá pelo minuto 110 (o filme tem 163), reaparece num quase demolido cassino de Vegas o Rick Deckard de Harrison Ford. Desde este momento, a narração ganha em suspense, intriga, humor e emoção até chegar a um intenso desenlace com ares épicos e ressonânci­as de western (logicament­e futurista).

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@folhadelon­drina ‘Blade Runner 2049’: o choque entre os velhos modelos de replicante­s rebeldes e os novos, úteis às necessidad­es do sistema, fica bem claro desde o início
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Fotos: Reprodução Com um visual estonteant­e,’Blade Runner 2049’ é um filme que sabe de sua importânci­a sem ser arrogante

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