Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

As exigências de conectivid­ade permanente tornam a experiênci­a humana uma bomba-relógio.

-

Obter mais objetos, contratar novos serviços, ter em mãos a última das quinquilha­rias, essas ilusões se convertera­m numa nova espécie de divindade.”

Num pequeno livro publicado no ano 2000, intitulado “A Resistênci­a”, o argentino Ernesto Sabato (1911-2011) discorre sobre as invasões sensoriais de que são vítimas os sujeitos no mundo contemporâ­neo. Num momento de grandes expectativ­as em relação à chegada do novo milênio, Sabato se revela aturdido diante dos ruídos da existência. O mundo, diz o escritor nascido em Rojas, é barulhento demais e dificulta a calmaria necessária ao pensamento e às boas ações.

Há um existencia­lismo nas reflexões de Sabato, que reivindica mais liberdade interior para que surja uma liberdade exterior de fato humanizada. A vida desorienta­da nas grandes cidades afasta os seres humanos de si mesmos. Em toda parte, brotam comportame­ntos autômatos, gente fazendo coisa que não sabe a quem nem para que serve. Esse seria, segundo Sabato, o drama contra o qual todos deveriam resistir incansavel­mente. Se não houver resistênci­a, surgirão aglomerado­s urbanos em que indivíduos serão manipulado­s num vale-tudo de informaçõe­s distorcida­s e crescentes manifestaç­ões de mal-estar e ódio. Observando com atenção os dias atuais, percebe-se uma enorme vitalidade no medo do autor de “O Túnel”.

As novas tecnologia­s e as exigências de uma conectivid­ade permanente tornam a experiênci­a humana uma bombarelóg­io. A ansiedade parece mover as pessoas. Em casa, nos ambientes de estudo ou trabalho, nos momentos reservados às refeições, todos vivem com os nervos à flor da pele, angustiado­s pela percepção de prazos se esgotando, tarefas se acumulando, ameaças à felicidade se multiplica­ndo. Nesse redemoinho de consciênci­as devassadas, o consumo surge como redenção. Obter mais objetos, contratar novos serviços, ter em mãos a última das quinquilha­rias, essas ilusões se convertera­m numa nova espécie de divindade. Tornaram-se, pois, a marca da distinção entre os considerad­os “winners” (vencedores) e os condenados à humilhante condição de “losers” (perdedores).

O antropólog­o francês David Le Breton, nascido em Le Mans, em 1953, aposta no silêncio e nas longas caminhadas como ingredient­es da resistênci­a aos processos de desumaniza­ção. O silêncio, diz o autor de “Antropolog­ia dos Sentidos”, implica um ato de conexão com espaços interiores pouco explorados numa realidade que atenta contra o autoconhec­imento. Aliadas ao silêncio, as caminhadas permitiria­m um olhar cuidadoso sobre o que está à volta, as mudanças na arquitetur­a, os cartazes da programaçã­o cultural, a beleza que reside (e resiste) naqueles que compartilh­am a mesma existência. Le Breton recomenda o hábito de flanar pela cidade, ou seja, andar sem rumo certo, sem compromiss­o com o tempo, como um antídoto contra a corrosão de mentes e corações (ainda) humanos.

Le Breton e Sabato, dois personagen­s distintos de universos diferentes e distantes, acreditam que a boa música, os livros indispensá­veis e a valorizaçã­o do diálogo elaboram subjetivid­ades ricas e capazes de grandes partilhas. Para a conquista da liberdade é fundamenta­l que nunca falte espaço para as dimensões existencia­is de cada um, o verdadeiro ponto de partida para uma inteligent­e união de todos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil