Folha de Londrina

Afinal, para que servemas algemas?

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Somos caminhante­s que têm muito para viver e aprender - e nenhuma algema é mais forte do que nosso querer”

LIZ CLARA CAMPOS é assistente social, gerontólog­a e servidora municipal em Londrina

Sabe aqueles momentos em que olhamos no espelho e vem logo a lembrança do que fomos? Quando me pego assim, um cenário que insiste em aparecer: vejo-me lá pelos meus seis, sete anos... era Natal. Naquele tempo não se ganhavam presentes como as crianças de hoje em dia; presentes eram só em dias especiais. Estava na festa, Queria muito receber o presente, pensava nele já havia alguns dias e tentava imaginar o que seria, afinal, meus pedidos eram muitos e nunca tinham sido atendidos.

A hora chegou. Euforia! Ao abrir a caixa, meus olhos pararam, fiquei sem me mover. Era uma caixa grande e no fundo, bem no fundo, estava lá... um gélido par de algemas cinzentas. Decepção!

Meus olhos fitaram as outras crianças ao meu lado que já brincavam contentes com bonecas bonitas, bolas coloridas e jogos multicores. Uma dor tão grande me fez calar, dessas que dá nó na garganta e que parece criar um calo. Era esse meu presente, era o que tinha para mim e eu não podia fazer nada. Aceitação! Logo fui achando um jeito de brincar com aquilo. Na rua, a molecada brincava de mocinho e bandido e eu, com minhas algemas, fui aceita porque ninguém tinha uma igual. E nisso já vi vantagem.

Agora, aqui neste futuro, que chegou de certa forma rápido demais, consigo compreende­r as algemas. A imagem congelada se desfaz aos poucos e as algemas passam a ter outro significad­o. É como se eu abrisse de novo a mesma caixa e revivesse tudo outra vez. Mas dessa vez sem sofrer. Afinal, para que servem as algemas? Elas servem para prender a dor do passado e deixá- la fora do alcance de nos ferir. Podem prender palavras amargas que saem de nossa boca sem pensar; prender o ímpeto de querer revidar quem nos magoou. Prender a amargu- ra que insiste em nos visitar, prender sentimento­s que afastam a crença em nós mesmos, que fragilizam e deixam sem vida nosso querer. Pensamento­s cinzentos podem arrasar uma vida e nos levar longe de quem amamos; podem, sim, prender as lágrimas que torturam o coração. Sim... algemas podem ser muito úteis. E neste mundo - de tantos muros, tantas prisões, injustiças, dores, perda de valores e falta de paz e de amor - podemos e temos dentro de nós a capacidade de decidir nosso querer, de superar e de ser melhor a cada dia! E nem sempre é fácil e erramos muito. Naquele tempo Papai Noel me decepciono­u, mas hoje em dia, olhando o cenário em que vivemos, vejo que não é muito diferente com tantas coisas, a todo o momento, que nos amedrontam e também decepciona­m. Essas caixas estão por aí, espalhadas na vida da gente, mas, depois que aprendemos o segredo das algemas, adquirimos a capacidade de suportar as adversidad­es sem nos tornarmos vítimas do sofrer.

Agora que a fantasia de criança já se quebrou há tanto tempo, consigo entender essa analogia, saber que a caixa apenas havia sido trocada. Posso então dizer ao bom velhinho que fiquei feliz com o presente... que talvez poucas daquelas crianças (ou nenhuma delas) tenham tido tanta sorte quanto eu...

Um par de algemas foi o melhor presente, porque ele não se perdeu e até hoje está comigo, estampado em meu pensamento e, vivo no meu sentir, mostra que somos caminhante­s que têm muito para viver e aprender - e nenhuma algema é mais forte do que nosso querer.

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