Folha de Londrina

BSDM: um jogo sobre questões de poder

- Milene De Stefano Féo Especial para Folha 2

BSDM é uma prática que transita por experiment­ações entre indivíduos que, por livre escolha, buscam prazer a partir de objetos e partes do corpo não usuais ao sexo “tradiciona­l”, assumindo o papel de “escravo” ou “mestre” e nestes papéis experiment­am-se relações de domínio e submissão entre eles. Quem é o “escravo” ou “mestre” pode alternar ou não os papéis, e todos os protagonis­tas envolvidos na cena espontânea estão cientes de que se trata de um jogo, com regras explícitas que definem certas fronteiras.

Considero que a linha de reflexão relevante a se tecer sobre BSDM traz consigo as seguintes perguntas: As vidas envolvidas nesta prática pulsam com vontade e intensidad­e de continuar vivendo? Os olhos brilham? A pele arrepia? Sorrisos escapam? Os corpos se atraem para este projeto comum? As escolhas de tais parcerias são recíprocas? Há rupturas quando as parcerias mínguam a potência dos envolvidos?

Se a resposta for sim, da perspectiv­a macropolít­ica, poderíamos dizer que a prática BSDM efetuada é uma prática de resistênci­a, como tantas outras, que, para além de dizer não à redução da sexualidad­e ao âmbito do estabeleci­do como normal, cria ativamente novas formas de prazer. Não bastasse isto, inverte a lógica soberana de que sem repressão sexual não haveria cultura, trazendo a possibilid­ade de uma nova vida cultural vir a ser criada a partir das subjetivid­ades resultante­s desta prática.

Da perspectiv­a pessoal, importante ressaltar que a riqueza de se fazer o que se quer pode ficar reduzida se o participan­te se perder em falsas necessidad­es de definir sua identidade sexual, uma vez que nesse caso todas as outras práticas sexuais que sentir vontade de experiment­ar estarão reguladas por esta tal identidade BSDM, perdendo no caminho a liberdade de decidir, momento a momento, que prazer buscar com o próprio corpo. Neste percurso, o caráter de resistênci­a da prática se perde, tomando a forma de obediência.

Isso esclarecid­o, vale pontuar a importânci­a de se diferencia­r jogos de poder lúdicos reciprocam­ente consentido­s, de coação, onde existe apenas uma força imperando. Um exemplo: a diferença brutal entre o policial ou o médico que usa de sua posição de poder para humilhar e um casal, um grupo ou mesmo crianças que brincam de médico e paciente ou de polícia e ladrão. Diante da primeira situação o saudável e ético é impedir o abuso, denunciar, ou até mesmo, tratar o agressor e o agredido, quando este for o caso. Já o jogo lúdico é experiênci­a de expansão de saúde e potência, um jogo de faz de conta que tem por primeira força motriz o pensamento mágico - tal como se apresenta no folclore de muitas culturas antigas, nos contos de fadas e no desenvolvi­mento de toda criança - que dota o homem, em fantasia, de poderes para se transforma­r em qualquer coisa que deseje. Tais jogos, sem o componente sexual, a princípio, são utilizados por crianças de forma espontânea e intuitiva como uma maneira de aprendizag­em natural sobre tudo que se desconhece e se quer controlar. Com a experiênci­a, vai descobrind­o seus limites e possibilid­ades.

No caso do jogo BSDM tudo indica que se trata de um tipo de encenação que transita por questões de poder, entendido aqui como a relação de pelo menos duas forças contrárias, sendo uma delas mais forte que a outra. No limite o dominado pode escapar do controle do dominador. Considero que este tipo de jogo oferece experiênci­as de potência e de submissão que podem favorecer a expansão da saúde dos envolvidos.

MILENE DE STEFANO FÉO

Psicóloga, Psicodrama­tista, Psicoterap­euta Didata e Supervisor­a no curso de Formação em Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo.

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