AVENIDA PARANÁ
A alta cultura é um antídoto para a perda da realidade que vivemos no nosso tempo.
No romance “A 25ª Hora”, do autor romeno Virgil Gheorghiu, uma personagem conta que antigamente os submarinos não tinham um aparelho que determinava a quantidade de oxigênio disponível. Os marinheiros então levavam alguns coelhos a bordo. Quando o ar começava a ficar tóxico, os coelhos morriam. A morte dos bichos era sinal de que só havia mais seis horas de vida para os seres humanos. Ou o submarino voltava à superfície e renovava o ar, ou todos os tripulantes morreriam.
Quando uma civilização entre em declínio, os coelhos começam a morrer. Esses morticínios ocorrem por diversas maneiras. No Brasil, de uns anos para cá, nós vivemos algumas situações extremas e diversas formas de genocídio, mas o mais grave deles é, certamente, o genocídio de sangue. Com bandidos armados, população desarmada e polícia perseguida, o Brasil tem quase 70 mil homicídios por ano. Um a cada nove minutos.
Sim: os coelhos estão morrendo. Mas não apenas eles.
A alta cultura está para a nossa civilização assim como a carga de oxigênio está para o submarino. Como ensinava o saudoso professor José Monir Nasser, grande divulgador dos clássicos literários, só sairemos da crise civilizacional em que estamos mergulhados se resgatarmos as grandes obras da imaginação. Já dizia o escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal: “Nada existe na realidade política de um país que não esteja primeiro na sua literatura”. O mesmo vale para toda a civilização e para toda e qualquer realidade, não apenas a política. Sem o retorno aos clássicos, continuaremos patinando entre os nossos genocídios — o de sangue, o da corrupção, o da inteligência e tantos outros. Continuaremos cegos no tiroteio dos extremismos, dos fanatismos e das ideologias.
Tenho uma definição particular para o extremismo e o fanatismo que tanto mal fazem à nossa época. Fanático, extremista, revolucionário, radical, ideólogo é o sujeito que acredita conhecer a verdade sem nenhuma consideração pela estrutura da realidade. Porque é evidente que a verdade inteira só é cognoscível por Deus. Lembremos a frase de Jesus: “EU SOU o caminho, a verdade e a vida”. Mas nós, humanos mortais, só teremos acesso à verdade pela via da realidade, com os instrumentos da linguagem e do conhecimento, que se encontram na cultura clássica e na tradição sagrada. Não há uma terceira via.
A alta cultura é um antídoto para a perda da realidade que vivemos no nosso tempo, tempo em que se tornou proibido dizer que uma mulher é uma mulher, que um homem é um homem, que o céu é azul e que a grama é verde.
Ainda que muitas vezes possamos viver a maldição da personagem Cassandra — que tinha o dom de enxergar a verdade, mas não o de convencer as pessoas —, nós não ficaremos calados. Buscaremos o ar puro dos grandes livros. Poderemos até sofrer o mesmo destino do palhaço de Kierkegaard, que correu até a aldeia para avisar que o circo estava em chamas, mas todos deram risada. Poderemos até ser os coelhos de amanhã. Mas não vamos parar nunca. Aprendemos com o herói Odisseu que a maior aventura é voltar para casa.
A alta cultura está para a nossa civilização da mesma forma que a carga de oxigênio está para um submarino”