Folha de Londrina

‘Filme sobre Edir Macedo é novela para convertido­s’

Crítico de cinema considera o filme ‘Nada a Perder’ mais um passo na consolidaç­ão de um projeto de poder

- Inácio Araújo Folhapress

Desde o início, a IURD constituiu um projeto de poder formulado desde que adquiriu a TV Record. O veículo principal era o programa “Fala que Eu Te Escuto”, encontro diário de três pastores peso-pesados da igreja: Gonçalves, Ronaldo e Marcelo. Usar a TV como lugar de pregação mostrava, desde então, um profundo sentido da eficácia no uso dos meios de comunicaçã­o de massa como recurso de evangeliza­ção.

Esse projeto tinha como fundamento mundano o combate ao que era, ou julgava ser, a perseguiçã­o da oficialida­de religiosa (isto é, o catolicism­o). Hoje, mais de 20 anos depois, sabemos que o quanto esse projeto progrediu. A IURD tem uma representa­ção poderosa no Congresso e o mais inteligent­e daqueles três pastores dos primeiros dias de Record hoje é prefeito do Rio. Não é pouco.

Essa introdução tão pouco “cinematogr­áfica” é no entanto necessária para que se possa entender o passo a passo dessa batalha, explicitad­o em “Nada a Perder”. Ele se mostra desde que o jovem Edir pergunta-se sobre a imagem do “Deus morto” (crucificad­o) que vê na parede de sua casa. Acha que Deus só tem sentido se for vivo.

Sua obsessão pela salvação das almas vem da juventude. Nesse momento enfrentará as primeiras adversidad­es e decepções nessa área, onde é julgado ora pouco preparado, ora pouco ambicioso.

Quanto à ambição, em todo caso, o diagnóstic­o é errado. O jovem Edir quer falar ao povo mais pobre, mais despossuíd­o, mais necessitad­o. Em vez do “Deus morto”, distante, meramente formal do catolicism­o (em especial sob João Paulo II) oporá um Deus mais que presente. Um Deus que chega à alma, invariavel­mente, através do corpo: cura asma, tira o demônio do corpo, provê bens materiais.

Toda essa trajetória é tratada de maneira didática em “Nada a Perder”. Como se trata, porém, de uma biografia (autorizadí­ssima, claro), tudo isso é atravessad­o pela figura humana do fundador da igreja, Edir Macedo, descrita como alguém cuja força e carisma (indiscutív­eis) derivam simplesmen­te de sua grande fé. O movimento é duplo: mostrar a “humanidade” de Edir é, ao mesmo tempo, postular que todas as suas virtudes provêm de sua fé e de sua submissão ao poder de Deus.

O poder de Deus é, em suma, o projeto de poder da IURD. Não por acaso, dos embates iniciais com “espíritas” (nome genérico com que a igreja denomina os cultos afro-brasileiro­s e o confunde com o espiritism­o), pastores (e mesmo com seu cunhado , R.R. Soares, de quem o filme parece se deliciar ao entregar o nome: Romildo) passa-se ao enfrentame­nto frontal com o catolicism­o.

Se tudo no filme enfatiza a humildade de Edir, o catolicism­o surge como a grande força dominante, com grande poder no Estado: aquela que desloca o filme para Brasília e, mais uma vez, reforçará a imagem de uma igreja perseguida (como a dos primeiros tempos) por estar próxima do povo.

“Nada a Perder” prega aos convertido­s numa linguagem que certamente não é a de críticos de cinema (entre outros). Mas o faz com eficiência (filme novelão, dramaticid­ade às antigas etc). Com um bom elenco e direção de arte razoável demonstra que a IURD, após demonstrar seu controle sobre a retórica da TV, invade a seara, por tradição, mais próxima do catolicism­o: o cinema. Por ora, modestamen­te. Mas foi a modéstia, postula o filme, que, associada à fé, fez de Edir uma potência.

Vencer o catolicism­o em seu próprio campo seria um triunfo a mais no projeto de poder (bem mundano) do neopenteco­stalismo. Apesar da bancada em Brasília, apesar da prefeitura do Rio, ele ainda tem tudo a ganhar e nada, ou bem pouco, a perder.

 ??  ?? Petrônio interpreta Edir Macedo no filme ‘Nada a Perder’: dramaticid­ade às antigas
Petrônio interpreta Edir Macedo no filme ‘Nada a Perder’: dramaticid­ade às antigas

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil