A CIDADE FUTURA
No Brasil deste ainda início de século 21, o vazio do pensamento quer intervenção militar.
Arendt concluiu que a democracia – esse valor ao mesmo tempo tão difuso, incompreendido e maltratado – tinha, já àquela altura, um inimigo poderoso: o vazio do pensamento
Um dos livros mais interessantes da filósofa Hannah Arendt (1906-1975) é “Eichmann em Jerusalém”, resultado ampliado de uma reportagem publicada originalmente na revista estadunidense “The New Yorker”, em 1963. Como sugere o próprio subtítulo da obra, trata-se de um relato sobre a banalidade do mal, um fenômeno que, em tempos de crise, ressurge como um fantasma na história, disposto a politizar sensações de insegurança e a agredir de modo implacável os valores democráticos que, a trancos e barrancos, tentam orientar as relações humanas no mundo contemporâneo.
Arendt, diante de um tribunal montado pelo Estado de Israel para julgar um oficial nazista acusado de crimes contra a humanidade, vê-se perplexa por não encontrar em Adolf Eichmann, o suposto genocida de judeus, uma figura monstruosa e impiedosa. No lugar do que se supunha, a autora de “A condição humana” acompanhou a fala fria de um sujeito que afirmava ter cumprido ordens, reproduzindo a cada resposta às inúmeras questões a ele dirigidas uma imensa incapacidade de refletir sobre os seus atos ou escapar às frases feitas mediadas pela retórica nazista. Arendt percebeu, então, que Eichmann era um típico arrivista, sedento por cumprir as metas a ele confiadas. Era um homem marcado por um comportamento orquestrado pela máquina nazista tornada “natural”. O horror deixara de ter motivações e passara a fazer parte da paisagem, como algo de que não se podia livrar.
Eichmann encarnava, segundo Arendt, o “coração das trevas”. Dentro da cabine de vidro construída para protegê-lo de possíveis furores vingativos, o medíocre oficial nazista revelava a nulidade de sua inteligência e a total ausência de emoções em suas atitudes. Exteriorizava indiferença e nenhum apreço por valores humanos que pudessem fazer da realidade algo compartilhável entre indivíduos e grupos diferentes. Arendt concluiu que a democracia – esse valor ao mesmo tempo tão difuso, incompreendido e maltratado – tinha, já àquela altura, um inimigo poderoso: o vazio do pensamento.
É difícil aferir o que vem primeiro, a banalidade do mal ou o vazio do pensamento. O fato é que ambos os fenômenos se associam à perda da memória e a leituras equivocadas dos processos históricos. A banalidade do mal consistiria, no olhar de Eichmann, em não haver nada de mais nos campos de concentração, no extermínio de judeus e estrangeiros, na perseguição a condutas singulares e fora de padrões. No limite, na medida em que essas “coisas” não tinham importância nenhuma, podia-se até negar o holocausto, referendando que o ocorrido durante a guerra, naquela década de 1940, foi brando e inocente, uma decisão do nazifascismo para redimir a humanidade de seus infortúnios. Por mais estarrecedoras que possam parecer, essas interpretações existem e vêm ganhando corpo e coragem mundo afora.
No Brasil deste ainda início de século 21, o vazio do pensamento quer intervenção militar e acredita, com isso, que os males do país serão todos resolvidos. A banalidade do mal, no caso, consiste na ilusão de adotar medidas autoritárias e desumanas para enfrentar os complexos desafios da democracia, mesmo que o preço desse absurdo seja reanimar o “coração das trevas”.