Jornalistas não fazem sapatos
O jornalismo é a profissão mais rebelde do planeta. Sua matéria-prima, a notícia, não cabe em caixas de sabão nem nas embalagens de secos e molhados. No dia a dia, quando pensamos que terminamos o trabalho, lá vem a notícia a nos desafiar como um desses brinquedos que dão sustos. Nessa hora, o jornalista esquece o relógio e trata de providenciar a manchete, o texto de denúncia, a crônica sobre o escândalo, a rotina feita a partir da realidade que ainda embala o sonho de ser um porta-voz das coisas do mundo.
O jornalismo é a profissão mais rebelde do planeta. Quando comecei minha jornada, há algumas décadas, não tratávamos nossas redações como um fiscal dos cartões de ponto. Mal consultávamos as horas e ninguém se espantava se um repórter maluco, desses que trazem na cara seu talento, embalado por um fato novo voltasse à redação fora de hora, depois de um plantão na delegacia ou de uma sessão no teatro. “O Mistério de Irma Vap”, com Marco Nanini e Ney Latorraca, foi um desses espetáculos que me fizeram voltar correndo para escrever sobre a alucinante troca de roupas dos atores que se transformavam em personagens sucessivos, sempre com um figurino novo, que moldava não só seus corpos, mas suas personas. Naquele momento, senti que não conseguiria guardar o texto numa caixa de sabão e esperar o dia seguinte para ligar a máquina. Às 23h30, estava na redação e ainda encontrei colegas no fechamento.
O jornalismo é a profissão mais rebelde do planeta. Quando pensamos ter acabado a edição, alguém envia fotos de Marte, uma celebridade morre, um síndico desfila nu, um avião faz pouso forçado, o Zeppelin reaparece, chegam notícias dos mortos-vivos de Brasília, do cantor desaparecido, da moça que foi estrangulada, de um circo de horrores, de uma cidade encantada, de um jornal que fechou as portas e, com alguma sorte, cai mais um presidente.
O jornalismo não tem hora, não é previsível como a novela das oito, não se adapta a disciplinas rígidas, a regras de três, a equações, ao comportamento de bom aluno, à intolerância das leis, à camisa de força dos sindicatos. O jornalismo não tem jeito, é anárquico, subverte a ordem das coisas porque é parceiro do acontecimento, cúmplice dos fatos, amante da novidade, companheiro do movimento, irmão do devir. Por isso, não queiram nos acomodar em caixinhas, porque jornalistas não fazem sapatos nem se comportam como cozinheiros pondo a mão na massa com a certeza de que vão fazer macarrão. O menu muda a todo instante e, no dia seguinte, ai daquele que servir a sopa fria.
Jornalistas ficam felizes quando inauguram-se jornais, sites, portais, emissoras de rádio e televisão. Corredores por onde passa a notícia como um produto do imponderável, das horas passadas no expediente para informar o cidadão, formar opinião e, com alguma sorte, transformar a sociedade numa antena crítica que reprova o comodismo, a corrupção, bate de frente com autoridades e sistemas caducos.
Por tudo isso, na semana em que um dos jornais mais tradicionais do Paraná deixou de circular nas bancas abdicando do formato impresso para prosseguir apenas no digital – também ficamos tristes. Como bons jogadores, gostamos da concorrência, gostamos de jornais abertos, mais edições impressas, mais sites, mais portais, mais emissoras de rádio e TV, mais canais onde possamos conduzir a notícia, essa senhora que arrebenta diques e cartões de ponto com a natureza do que acontece fora do script porque faz parte do mundo das coisas vivas, onde nascem as profissões sem coleira.
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