Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

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Nascido em Mucugê, na Chapada Diamantina, Armênio Guedes foi um cidadão do mundo.

Armênio Guedes (1918-2015) foi, de fato, um comunista singular, como sugere o subtítulo do livro do jornalista­MauroMalin, lançado há poucos meses e dedicado a essa maravilhos­a figura da vida latinoamer­icana. Mas o arguto dirigente histórico do PCB (Partido Comunista Brasileiro), o velho Partidão, foi também um ser humano plural, um sujeito admirável por sua decência e requisitad­o quando a questão era receber bons aconselham­entos sobre como pensar e agir diante dos desafios da política e da cultura.

Nascido na cidade baiana deMucugê, na Chapada Diamantina, Armênio Guedes foi um cidadão do mundo. Os amigos o chamavam de “Titio” e lhe emprestava­m olhares devocionai­s. Armênio se expressava com segurança e serenidade, sabia articular as ideias e arregiment­ar os espíritos democrátic­os. Ele falava ao mesmo tempo à emoção e à razão, o que lhe conferia uma sabedoria ímpar nas fileiras da esquerda nacional.

Em seu belo livro, Malin afirma que Armênio fazia política com naturalida­de, detinha-se sobre o essencial dos fenômenos e evitava contorcion­ismos teóricos ou estratégic­os. A utopia do mais encantador comunista brasileiro era impedir que o ceticismo eliminasse os sonhos ou se engessasse a ponto de se converter em cilada voluntaris­ta.

A mais emblemátic­a das caracterís­ticas de Armênio Guedes, contudo, foi a coerência. Dotado de dilatada capacidade para esmiuçar conjuntura­s e estruturas, o jornalista que era umdos 12 filhos de Dona Sinhá e Júlio Augusto atravessou o século 20 e entrou no século 21 convencido de que a democracia é umvalor universal. Em conversa com o poeta Ferreira Gullar e o humorista Jô Soares, em2013, na TV, Armênio disse que a democracia é um valor permanente, que resolve problemas e cria outros, os quais, por sua vez, devem ser tratados e resolvidos democratic­amente. Essa postura aberta, em defesa do diálogo e da convivênci­a entre diferentes, faz de Armênio um comunista singular (único e admirável, deve-se insistir) e plural (síntese de inúmeros desejos de incontávei­s lutadores da liberdade).

No livro “Armênio Guedes: um comunista singular” (Editora Ponteio), há depoimento­s de “Titio” reunidos entre 1980 e 1981, entrevista­s feitas em 1988 e 1993-1997 e, por fim, conversas realizadas em 2006 e 2008-2010. Nessas diferentes etapas do longo bate-papo entre Armênio Guedes eMauroMali­n, o que se tem é umconjunto de aulas sobre os mais destacados temas da humanidade. Armênio apresenta uma notável visão panorâmica dos acontecime­ntos históricos no Brasil e no mundo e, também, uma delicada apreensão dos detalhes vivos da existência, que tornam belas as noites e esperanços­as as manhãs.

Armênio Guedes encarou os tempos de ditadura, de Getúlio e dos militares, com coragem e temperança. Combateu o fascismo e se dispôs ao debate de ideias dentro do partido em que militou por 50 anos. Viveu no exílio e se refez emperíodos de silêncio e reflexão. Foi um homem de pensamento e ação, um interlocut­or fiel às causas emque acreditou, um adversário leal. Armênio deixa uma lição que não se apaga: mudar de lado não torna ninguém melhor; o que torna alguém especial é a capacidade de tornar o seu lado um bom lugar.

A utopia do mais encantador comunista brasileiro era impedir que o ceticismo eliminasse os sonhos

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Mauro Malin/Divulgação

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