Folha de Londrina

AOS DOMINGOS PELLEGRINI

- D.pellegrini@sercomtel.com.br

Passeio por um pedacinho do imenso vale e levo caderneta para anotar

Passeio pelo vale. Na verdade, só por um pedacinho do imenso vale, com seu regaço e seu riacho, entre horizontes ainda crespos de matas ou aplainados por plantações. Levo caderneta para anotar:

Quanto vale passear pelo vale em paz?

De repente venta: árvores se descabelam, chovem folhas, range o bambuzal, farfalha a capoeira, passarinho­s ao léu: fogem para o céu ou para os ninhos? Certo é que a grande vassoura não poupa ninguém e, olhando bem, dá um belo espetáculo.

Ninguém varre mais bonito queovento

No alto da colina procuro nuvens. Há dois meses esperamos chuva, lamentando tantos dias azuis de sol castiguent­o. Mesmo quando se formaram grandes nuvens, logo se apequenara­m e foram levadas pelo vento.

Nuvens farsantes imensos gigantes se fazem duendes

Menino, tive dias de solidão, quando a família mudava para nova cidade sem amigos. Então ia encontrar amigos nos livros – Robinson Crusoé, Gulliver, a turma do Sítio do Picapau Amarelo – e, quando me cansava de ler, olhava o céu. Aí matutava como era possível tanto movimento no lento balé das nuvens, que, sem parecer que mudam, mudam sem parar. Depois no colégio, quando professor explicou que nuvens são apenas vapor que sobe das águas da terra, e o maestro de seu balé é o vento, o céu para mim perdeu o mistério – mas não a graça de pintura em movimento, feita por um pintor que não assina seus quadros.

Céu é tão só luz vento e vapor na paleta de Deus

A cachorra caminha muito mais que eu, pois vai e volta farejando aqui e ali, entrando em trilhas, reaparecen­do com o rabo a acenar felicidade. Vislumbro cor na capoeira, vou ver, é limoeiro-rosa carregado, encho os bolsos.

Vida mais cheirosa e saborosa com limões-rosa

Volto a caminhar e... cadê as grandes nuvens de agorinha mesmo? Lembro da música de Gordurinha: Oh, Deus / perdoe este pobre coitado / que de joelhos rezou um bocado / pedindo pra chuva cair sem parar... E então Deus manda tanta chuva que o pobre cearense pede para o sol voltar, alusão à ilusão humana de pretender controlar o incontrolá­vel.

Quem dera ser nuvem que nada faz além de se desfazer

Mas se ilusão a nada leva, desilusão a nada conduz. Então sigo para o poente, morte sangrenta do dia para o pessimista, para o otimista aceno colorido de amanhã.

Teu tesouro estrelas de prata poente de ouro

À noite em casa, a cachorra choraminga medrosa olhando coriscos no horizonte, já ouvindo os trovões que não ouvimos. Mas sabemos que chegarão aqui, trazendo a chuva, então, para comemorar, faço chá, pego a velha caneca e vou para a varanda.

Caneca de chá saudando a chuva depois da seca

Primeiro chega o vento, depois os trovões ribombam acima da casa assustando a cachorra mas, quando chega a chuva, ela já ressona. Obrigado, Deus, em nome da grama, das plantas do vale e do jardim, e também em nome dos passarinho­s; em retribuiçã­o, floriremos e cantaremos e nos alegraremo­s para continuar em frente, rumo a novos poentes.

 ?? Dalva Vidotte/ Divulgação ??
Dalva Vidotte/ Divulgação

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil