AMEAÇA DE RETROCESSO -
Antropólogo alerta sobre o risco da retirada de direitos da população negra no Brasil
Referência mundial em relações raciais, o antropólogo Kabengele Munanga afirma que a população negra do Brasil corre o risco de perder conquistas históricas obtidas nas últimas décadas. “O movimento negro precisa continuar mobilizado”, alerta.
Apopulação negra do Brasil vive uma situação de ameaça às conquistas obtidas através da mobilização do movimento negro nas últimas décadas. Entre elas, estão a aprovação de políticas afirmativas como a reserva de vagas em universidades para negros e estudantes de escolas públicas e a obrigatoriedade de ensinar história da África e cultura afro-brasileira na educação básica. A opinião é do professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo), Kabengele Munanga, considerado referência sobre relações raciais no Brasil e no exterior. Ele esteve em Londrina no dia 26 de julho participando da cerimônia de inauguração da sede própria do Neab (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros) da UEL (Universidade Estadual de Londrina).
Nascido em 1942, em uma aldeia de Bakwa Kalonji, na República Democrática do Congo, Munanga graduou-se em Antropologia Social e Cultural pela Universidade Oficial do Congo (1964-1969), onde iniciou sua carreira acadêmica como professor assistente. Em 1969, iniciou seus estudos de pós-graduação na Universidade Católica de Louvain (Bélgica) e foi pesquisador no Museu Real da África Central, em Tervuren (Bruxelas). Por causa da ditadura militar instalada em seu país, o doutorado só foi concluído em 1977, pela USP, onde se tornou professor titular do Departamento de Antropologia.
Em toda sua trajetória acadêmica, desenvolveu pesquisas nas áreas de Antropologia da África e da População Afro-Brasileira, com ênfase em temas como o racismo, políticas e discursos antirracistas, negritude, identidade negra versus identidade nacional, multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais. Foi, também, um dos protagonistas no debate nacional em defesa das cotas e ações afirmativas. Em junho deste ano, o professor foi homenageado na 15ª edição do Prêmio USP de Direitos Humanos.
Na palestra na UEL, ele defendeu a diversidade como uma riqueza coletiva da humanidade e lamentou o ódio à cultura africana que foi imposto pela educação dominante no Brasil. “O que fizeram os praticantes de religiões afro-brasileiras para merecer uma campanha de difamação e aniquilamento? Por que tanto ódio?”, questionou, para depois justificar a prática por interesses políticos e financeiros. “Querem aumentar a bancada eleitoral para conseguirem apoio contra temas como aborto e homossexualidade”, exemplificou. “A sociedade brasileira tem que lutar contra isso antes que seja tarde demais.”
O palestrante ainda explicou que as religiões de matriz africanas foram as únicas que não tiveram conflito direto com a religião católica, diferente do que aconteceu com o protestantismo e outros movimentos na Europa. “Como cidadãs e cidadãos cada um de nós tem o direito de praticar e viver a religião que escolheu. Mas não tem o direito de difamar e destruir a religião dos outros”, concluiu.
Como é a situação atual do negro no Brasil?
Estamos em um caminho movimentado e esperamos que as mudanças políticas pelas quais o Brasil está passando não traga retrocessos. A esperança é que algumas conquistas políticas não sejam confiscadas, como já aconteceu em outros países. Admite-se que o Brasil oficial é um país racista e precisamos lutar contra isso. Essa luta não se faz simplesmente com retórica, apesar da retórica ser importante no processo de conscientização. O combate verdadeiro ao racismo, porém, se faz com políticas de inclusão na sociedade, que passam pela educação, por exemplo, que é o cordão umbilical com todos os outros aspectos da inclusão do negro da sociedade. Estamos num túnel, as mudanças são poucas, mas as conquistas são significativas.
Quais conquistas o senhor acha que estão ameaçadas?
As políticas afirmativas, por exemplo. Quem garante que essas políticas não possam ser confiscadas? É um risco que corremos. Hoje, por exemplo, já há fraudes em várias universidades no acesso de negros através das cotas e várias instituições não combatem esta prática. Isso é um risco muito grande que corremos. Tem universidades como a Unilab, que promove a integração dos afro-brasileiros com vários estudantes de países onde a língua oficial é o português, principalmente os africanos. Esta universidade está sendo ameaçada, porque os filhos de africanos que vêm estudar aqui recebem bolsas de estudo e as bolsas estão sendo confiscadas. São riscos que podem ameaçar conquistas que ainda estão no início, porque a sub-representação do negro ainda é muito grande na sociedade brasileira. Demograficamente, por exemplo, os negros (pretos e mestiços) são cerca de 52% da população, o que significa quase 100 milhões de brasileiros. Eles são representados? Não são. Ainda estamos aquém de onde devemos chegar, é um processo que começou agora.
Como alcançar essa representatividade?
Isso se faz com as lutas, com as políticas de inclusão social, de combate ao racismo, políticas de inclusão da cultura e da história do negro na sociedade brasileira. O negro não se vê na história, só vê a história do outro, a Europa, mas não enxerga sua contribuição. A representatividade se faz com conquistas, com políticas públicas de inclusão, não há outro caminho.
Durante a palestra o senhor falou sobre intolerância religiosa, qual a consequência desse comportamento para o Brasil?
A consequência é que isso cria conflitos que a humanidade já conhece. Pode criar o que chamamos de extremismo religioso, existente em outros países e que ameaça a paz. A intolerância religiosa pode ameaçar a paz, além de destruir religiões que fazem parte do universo religioso brasileiro e da riqueza brasileira.
No dia 9 de agosto, o STF (Supremo Tribunal Federal) realiza em Brasília o julgamento de recurso extraordinário que questiona o abate de animais em rituais religiosos no Brasil. Por que esse tema causa tanta polêmica?
As outras religiões, para destruírem religiões africanas, dizem que são religiões que abatem animais e que isso deveria ser anulado. No entanto, tirar destas religiões o sacrifício dos animais, que faz parte de ritos, assim como o uso das foles e plantas que ligam o ser humano ao universo, acabará destruindo essas religiões, pois acaba com os fundamentos delas. Todo mundo come carne e para isso é preciso ter abate de animais. Por que os animais utilizados em ritos - e que também terão a carte consumida como comunhão - não podem continuar sendo abatidos enquanto a humanidade se alimenta de carne? É o caminho que encontraram para destruir essas religiões.
Qual a importância de o movimento negro continuar mobilizado no País?
O movimento negro precisa continuar mobilizado porque o pouco de conquistas que tivemos foi graças a essa luta, nada caiu do céu. O governo brasileiro não decidiu sozinho implementar cotas, não decidiu pela lei que prevê ensino de história da África e cultura afro-brasileira na escola. Tudo isso são conquistas dos movimentos sociais, de luta para transformação da sociedade. Se os negros não podem ficar na frente da luta, serão os brancos que ficarão? Você imagina as mulheres atrás dos homens? Os homens lutando por elas? Isso não existe. Se não houver movimento negro, a sociedade não vai mudar.
O combate verdadeiro ao racismo se faz com políticas de inclusão na sociedade”
Se não houver movimento negro, a sociedade não vai mudar”