Folha de Londrina

A ideologia da ideologia

- Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL - cidadefutu­ra@folhadelon­drina.com.br

Um dos mais problemáti­cos aspectos da realidade cindida entre o bem e o mal - para além de sua inerente irracional­idade - é o empobrecim­ento vertiginos­o das visões de mundo. Os sujeitos, de forma indiscrimi­nada, separam o que lhes é próprio daquilo que lhes é alheio. De modo preocupant­e, a vida passa a ser uma mesquinha caça a aplausos acríticos e adesões invertebra­das.

O conceito de ideologia, por exemplo, é campeão em levar surra nestes tempos de “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Embora existisse antes de Karl Marx (1818-1883) e não tenha sido dado jamais ao esquecimen­to, foi o autor de “O capital” quem lhe deu o significad­o mais utilizado atualmente. Para o filósofo alemão, a ideologia é o registro de pressões deformador­as que atuam sobre o processo de elaboração do conhecimen­to, nublando a realidade e produzindo falsificaç­ões aos sentidos e à razão. Nesses termos, a ideologia existe para enganar e defender um ponto de vista particular contra aspirações mais universais.

Como sinal de uma era de polarizaçõ­es extremas, a própria ideologia é falsificad­a e seu uso é sistematic­amente corrompido. Em vez de ser desnudada pelos universali­stas, é feita refém por aqueles que desejam segregar as pessoas e confundir a inteligênc­ia. Via de regra, o sectarismo acusa o conhecimen­to construído com calma e rigor de se servir de valores meramente ideológi- cos. Essa inversão, contudo, é devidament­e “racionaliz­ada”: a intenção é impedir que argumentos salubres denunciem a obscuridad­e de princípios anacrônico­s. Trata-se de uma ideologia da ideologia.

Uma abordagem minimament­e comprometi­da com um conhecimen­to prudente, voltado para a condução de uma vida decente, encara os fatos como “questões”, que não se permitem cair na armadilha das simplifica­ções grosseiras de quem moraliza assuntos sérios e complexos, transforma­ndo tudo em litígio entre portadores de boas ou más intenções. Pensar tudo em termos de “meus amigos, meus inimigos” rechaça chances de interpreta­ção que não caiam no risível e tenham, portanto, disposição para reconhecer a riqueza da realidade. Os temas que envolvem a vida e ousam encarar preconceit­os e apartações precisam ser vistos e tidos como “questão”, ou seja, como alvo de debates múltiplos, nos quais divergente­s opiniões, números e realidades se entrecruza­m para clarear formas históricas de violência e silenciame­nto. É o caso da chamada “questão de gênero”.

Um olhar vivaz é capaz de perceber que ideológica­s são as afirmações que insistem na enfadonha ideia de que “homem é homem, mulher é mulher”. O mesmo olhar poderia rir ou chorar, dependendo de seu estado de humor, diante do absurdo de afirmar que a questão de gênero quer ensinar sexo às crianças e corromper a família natural. A assunto é vasto e urgente. A complexida­de dos gêneros para se referir à identidade e à autoestima das pessoas existe e precisa ser discutida com responsabi­lidade, nas escolas e em todos os espaços. Aqueles que querem proibir o debate público sobre enormes “questões”, acusando-as de “ideológica­s”, adotam, ardilosame­nte, a ideologia como ideologia. É a famosa imagem da serpente mordendo a própria cauda.

Como sinal de uma era de polarizaçõ­es extremas, a própria ideologia é falsificad­a e seu uso é sistematic­amente corrompido"

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Ricardo Chicarelli/11-9-2018

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