A ideologia da ideologia
Um dos mais problemáticos aspectos da realidade cindida entre o bem e o mal - para além de sua inerente irracionalidade - é o empobrecimento vertiginoso das visões de mundo. Os sujeitos, de forma indiscriminada, separam o que lhes é próprio daquilo que lhes é alheio. De modo preocupante, a vida passa a ser uma mesquinha caça a aplausos acríticos e adesões invertebradas.
O conceito de ideologia, por exemplo, é campeão em levar surra nestes tempos de “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Embora existisse antes de Karl Marx (1818-1883) e não tenha sido dado jamais ao esquecimento, foi o autor de “O capital” quem lhe deu o significado mais utilizado atualmente. Para o filósofo alemão, a ideologia é o registro de pressões deformadoras que atuam sobre o processo de elaboração do conhecimento, nublando a realidade e produzindo falsificações aos sentidos e à razão. Nesses termos, a ideologia existe para enganar e defender um ponto de vista particular contra aspirações mais universais.
Como sinal de uma era de polarizações extremas, a própria ideologia é falsificada e seu uso é sistematicamente corrompido. Em vez de ser desnudada pelos universalistas, é feita refém por aqueles que desejam segregar as pessoas e confundir a inteligência. Via de regra, o sectarismo acusa o conhecimento construído com calma e rigor de se servir de valores meramente ideológi- cos. Essa inversão, contudo, é devidamente “racionalizada”: a intenção é impedir que argumentos salubres denunciem a obscuridade de princípios anacrônicos. Trata-se de uma ideologia da ideologia.
Uma abordagem minimamente comprometida com um conhecimento prudente, voltado para a condução de uma vida decente, encara os fatos como “questões”, que não se permitem cair na armadilha das simplificações grosseiras de quem moraliza assuntos sérios e complexos, transformando tudo em litígio entre portadores de boas ou más intenções. Pensar tudo em termos de “meus amigos, meus inimigos” rechaça chances de interpretação que não caiam no risível e tenham, portanto, disposição para reconhecer a riqueza da realidade. Os temas que envolvem a vida e ousam encarar preconceitos e apartações precisam ser vistos e tidos como “questão”, ou seja, como alvo de debates múltiplos, nos quais divergentes opiniões, números e realidades se entrecruzam para clarear formas históricas de violência e silenciamento. É o caso da chamada “questão de gênero”.
Um olhar vivaz é capaz de perceber que ideológicas são as afirmações que insistem na enfadonha ideia de que “homem é homem, mulher é mulher”. O mesmo olhar poderia rir ou chorar, dependendo de seu estado de humor, diante do absurdo de afirmar que a questão de gênero quer ensinar sexo às crianças e corromper a família natural. A assunto é vasto e urgente. A complexidade dos gêneros para se referir à identidade e à autoestima das pessoas existe e precisa ser discutida com responsabilidade, nas escolas e em todos os espaços. Aqueles que querem proibir o debate público sobre enormes “questões”, acusando-as de “ideológicas”, adotam, ardilosamente, a ideologia como ideologia. É a famosa imagem da serpente mordendo a própria cauda.
Como sinal de uma era de polarizações extremas, a própria ideologia é falsificada e seu uso é sistematicamente corrompido"