Folha de Londrina

AVENIDA PARANÁ

- Fale com o colunista: avenidapar­ana@folhadelon­drina.com.br

Ele não conseguia dormir até rezar as palavras da oração de sua infância

Na noite em que completou 30 anos, ele não conseguiu dormir. Ficou em silêncio, no escuro, olhando para o teto vazio, onde jazia apenas uma lâmpada apagada. De repente, algumas fracas luzes começavam a piscar naquele precário céu particular; ele as chamou de estrelas. Então, de olhos abertos, ele tentava imaginar a quantos anos-luz se situaria cada estrela observada, e a longuíssim­a trajetória percorrida pela luz no espaço sideral até atingir o globo ocular de um cidadão insone do planeta Terra.

Depois daquela estrela, vinha outra ainda mais distante, e depois outra, e depois outra, com diferentes cores e magnitudes, até que, desesperad­o de cansaço, ele sentia a necessidad­e de dizer as palavras de sua infância católica, que imaginava esquecidas: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...” Só então dormia.

A insônia voltou nas noites seguintes, e não o abandonou mais. Adiava o quanto possível a hora de dormir; mergulhava em leituras, bebia conhaque, ouvia a 3ª Sinfonia de Beethoven, mas em certo instante o cansaço determinav­a que ele fosse para a cama. Assim que apagava a luz, as estrelas apareciam; de início, quase invisíveis, depois cada vez mais rutilantes, até que explodiam como um bilhão de usinas nucleares diante da perplexida­de do observador. Ele tentava adivinhar seus nomes: Ômega, Betelgeuse, Aldebarã... Mas eram nomes falsos. A verdade é que aquelas estrelas tinham rostos femininos: Ana, Celina, Rosa, Regina, Ateneia, Renata, Simone, Aracy, Maria. “Bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...”

De manhã, quando os pássaros começavam a cantar e a luz penetrava pelos frisos da janela, aconteceu algo muito raro para ele: lembrou-se de um sonho. Era uma família, uma pequena família, composta apenas de pai, mãe e filho. A mãe ensinava o filho a andar, a falar, a escrever. O pai lhe dava as primeiras lições do ofício de carpinteir­o. O menino crescia a olhos vistos, em graça e sabedoria. Durante o dia todo, ele voltava ao sonho, como se as fases da vida do menino fossem as páginas do livro que ele estava lendo, do relatório que ele estava revisando, de um diário que ele jamais pensara em escrever. À noite, contou estrelas até o momento de dizer, como um soldado que cumpria ordens: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores...”

Encontrou-se com um velho amigo, o médico português a quem procurava nas horas difíceis. O doutor falou-lhe da Linda Senhora vista em Aparecida, em Guadalupe, em Lourdes, em La Salette, em Schoenstat­t, em Fátima.

- Mas, meu amigo, há tantos anos eu não olho para a cruz!

- Por isso mesmo: ela está ali, aos pés do Filho crucificad­o.

Naquela noite, ele não contou estrelas. Apenas disse, antes de fechar os olhos: “Agora e na hora de nossa morte. Amém”.

Ele não conseguia dormir até rezar as palavras da oração de sua infância: “Ave Maria, cheia de graça...”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil