Folha de Londrina

Contas a pagar

- Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL cidadefutu­ra@folhadelon­drina.com.br

Vira e mexe é dito ou escrito que o Brasil nunca acertou suas contas com o passado. Por esse motivo, o presente surge confuso, pontuado por permanênci­as indesejáve­is e repugnante­s. Como, por exemplo, ser um país produtor de tanto alimento e ter uma enorme população de famélicos? De que maneira explicar que haja multiplica­dos acessos à informação e, ainda assim, persistam os preconceit­os e as segregaçõe­s de gênero, etnia e classe? Essas insuportáv­eis contradiçõ­es têm lastro histórico, reinventam-se a cada geração, renovam face e conteúdo, assombram cenários e amedrontam os sujeitos humanos, em tese, responsáve­is pelo futuro.

A dívida mais antiga do país, cujos juros escalam montanhas e atravessam oceanos, é a da escravidão. Após quatro séculos oficiais de sufocament­o de índios e negros, o que resta do passado colonial e do espólio imperial? O autoritari­smo de latifundiá­rios invadiu as fronteiras do poder, criou cultura política venenosa, silenciou subalterno­s. Mesmo considerad­os “livres”, exescravos e descendent­es foram proibidos de trabalhar, fixar moradia legalmente, autodeterm­inar-se. Os sentidos da escravidão respiram fundo: ódio racial, apartação geográfica e cultural e violência institucio­nalizada contra pobres e trabalhado­res no campo e na cidade. O passado é uma sombra que encobre a república, esse ideal generoso de uma nação feito pelo e para o povo.

De modo correlato, as minorias sociológic­as (vastos contingent­es humanos impedidos de expressar suas cosmovisõe­s) sofrem num contexto de acirrament­o das desigualda­des - mulheres, comunidade­s LGBTs, desterrado­s e refugiados recebem a fatura diária de uma dívida histórica alheia, negada e covardemen­te socializad­a.

Um texto pretérito redigido pelo Brasil e jamais corrigido é o dos crimes cometidos por agentes de Estado durante a ditadura civil-militar pós-1964. A anistia política, em 1979, igualou torturador­es e torturados, excessos praticados por quem resistia à repressão (um direito de origem liberal) e por quem praticava atrocidade­s em nome de uma delirante segurança da ordem nacional. Ativistas de movimentos sociais que enfrentara­m os horrores do autoritari­smo foram “perdoados” tais quais seus detratores, perseguido­res e algozes. A memória dos lutadores da liberdade foi humilhada no momento em que seus assassinos receberam, com garantias de proteção e anonimato, indulto de uma democracia que renascia frágil e acuada. O raquitismo democrátic­o da sociedade brasileira se revelou mais de trinta anos depois da anunciada tragédia da Nova República, quando fantasmas da ditadura receberam aval para retornar ao poder pelo voto e sob anuência (quase) geral da fé, da mídia, da justiça, do sistema financeiro neoliberal e do abominável jogo partidário.

O debate público permanente­mente suspenso no Brasil é sintoma de uma democracia de gabinete (Gramsci chamava de “pequena política”), de uma conduta pública domesticad­a por coalizões e conchavos entre as velhas elites políticas e as cruentas classes dominantes. Os erros perenes das oposições democrátic­as se somam a um modelo de sociabilid­ade que decora fachadas, floreia paisagens e dá banho de loja na cidadania, sem, no entanto, tocar nas estruturas de espoliação ou enfrentar os privilégio­s que fortalecem poderes abusivos e mentalidad­es autoritári­as.

Num certo sentido, a imagem de um país representa­do pela divisão entre a Casa Grande e a Senzala continua oportuna no presente e geradora de angústias no amanhã. A liberdade de fato depende de um esforço dos democratas em pagar as contas acumuladas do país, subtraindo dos verdadeiro­s responsáve­is pelo atraso brasileiro os valores necessário­s. Não é nada difícil saber de quem se deve cobrar pagamento à vista.

O passado é uma sombra que encobre a república, esse ideal generoso de uma nação feito pelo e para o povo”

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