Contas a pagar
Vira e mexe é dito ou escrito que o Brasil nunca acertou suas contas com o passado. Por esse motivo, o presente surge confuso, pontuado por permanências indesejáveis e repugnantes. Como, por exemplo, ser um país produtor de tanto alimento e ter uma enorme população de famélicos? De que maneira explicar que haja multiplicados acessos à informação e, ainda assim, persistam os preconceitos e as segregações de gênero, etnia e classe? Essas insuportáveis contradições têm lastro histórico, reinventam-se a cada geração, renovam face e conteúdo, assombram cenários e amedrontam os sujeitos humanos, em tese, responsáveis pelo futuro.
A dívida mais antiga do país, cujos juros escalam montanhas e atravessam oceanos, é a da escravidão. Após quatro séculos oficiais de sufocamento de índios e negros, o que resta do passado colonial e do espólio imperial? O autoritarismo de latifundiários invadiu as fronteiras do poder, criou cultura política venenosa, silenciou subalternos. Mesmo considerados “livres”, exescravos e descendentes foram proibidos de trabalhar, fixar moradia legalmente, autodeterminar-se. Os sentidos da escravidão respiram fundo: ódio racial, apartação geográfica e cultural e violência institucionalizada contra pobres e trabalhadores no campo e na cidade. O passado é uma sombra que encobre a república, esse ideal generoso de uma nação feito pelo e para o povo.
De modo correlato, as minorias sociológicas (vastos contingentes humanos impedidos de expressar suas cosmovisões) sofrem num contexto de acirramento das desigualdades - mulheres, comunidades LGBTs, desterrados e refugiados recebem a fatura diária de uma dívida histórica alheia, negada e covardemente socializada.
Um texto pretérito redigido pelo Brasil e jamais corrigido é o dos crimes cometidos por agentes de Estado durante a ditadura civil-militar pós-1964. A anistia política, em 1979, igualou torturadores e torturados, excessos praticados por quem resistia à repressão (um direito de origem liberal) e por quem praticava atrocidades em nome de uma delirante segurança da ordem nacional. Ativistas de movimentos sociais que enfrentaram os horrores do autoritarismo foram “perdoados” tais quais seus detratores, perseguidores e algozes. A memória dos lutadores da liberdade foi humilhada no momento em que seus assassinos receberam, com garantias de proteção e anonimato, indulto de uma democracia que renascia frágil e acuada. O raquitismo democrático da sociedade brasileira se revelou mais de trinta anos depois da anunciada tragédia da Nova República, quando fantasmas da ditadura receberam aval para retornar ao poder pelo voto e sob anuência (quase) geral da fé, da mídia, da justiça, do sistema financeiro neoliberal e do abominável jogo partidário.
O debate público permanentemente suspenso no Brasil é sintoma de uma democracia de gabinete (Gramsci chamava de “pequena política”), de uma conduta pública domesticada por coalizões e conchavos entre as velhas elites políticas e as cruentas classes dominantes. Os erros perenes das oposições democráticas se somam a um modelo de sociabilidade que decora fachadas, floreia paisagens e dá banho de loja na cidadania, sem, no entanto, tocar nas estruturas de espoliação ou enfrentar os privilégios que fortalecem poderes abusivos e mentalidades autoritárias.
Num certo sentido, a imagem de um país representado pela divisão entre a Casa Grande e a Senzala continua oportuna no presente e geradora de angústias no amanhã. A liberdade de fato depende de um esforço dos democratas em pagar as contas acumuladas do país, subtraindo dos verdadeiros responsáveis pelo atraso brasileiro os valores necessários. Não é nada difícil saber de quem se deve cobrar pagamento à vista.
O passado é uma sombra que encobre a república, esse ideal generoso de uma nação feito pelo e para o povo”