Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

- Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL - cidadefutu­ra@folhadelon­drina.com.br Por Marco A. Rossi

Desde que chegou, o homem branco vem dizendo que as formas de vida têm de ser as suas

Colonizar é estabelece­r fronteiras em território­s alheios, dominar tudo que lá esteja, seja coisa, seja gente (normalment­e, transforma­ndo as gentes em coisas). O ato em si da colonizaçã­o é impor uma visão de mundo, posicionar-se no limite de todas as possibilid­ades de evolução. Aquele que coloniza nunca dialoga, uma vez que seu objetivo é subjugar o colonizado, deter suas manifestaç­ões políticas e espirituai­s e aniquilar suas estratégia­s de resistênci­a. Uma colônia, enfim, é o lugar em que intuitos de eterna opressão são semeados.

Nos confins do mundo (leia-se: América Latina, África e Ásia), o colonizado­r europeu decretou que não havia cultura. Desde que chegou, o homem branco vem dizendo que as formas de vida têm de ser as suas. Só em seus território­s metropolit­anos é que existem os bons pensamento­s, as corretas interpreta­ções da história, das relações sociais, das nuances da psiquê. Na religião, seu deus é o único que conhece a verdade e pode redimir o pecado nato da podridão humana - tanto mais podre quanto maior a distância em relação às catedrais do Velho Mundo. No campo das artes e da ciência, fora da Europa (e mais tarde também de seus “clones” além-mar), tudo é selvageria e degeneraçã­o. Um planeta partido entre “os de cima” e “os de baixo” não é, pois, fato novo.

No Brasil, a estrutura de condutas e predisposi­ções ainda bebe nas águas da fonte colonizado­ra. Por aqui, junto à escravidão e ao permanente genocídio de índios e negros, ignora-se a riqueza das experiênci­as organizati­vas, econômicas e culturais do povo. É como se, antes da chegada do colonizado­r, nada nesta imensidão houvesse. Pior: a insistênci­a em dotar o colonizado­r de razão em tudo que fez (ou diz ter feito) apaga da memória histórica as genuínas contribuiç­ões que africanos de diversas regiões do continente a leste trouxeram, mantiveram e seguem praticando. Há muito mais de negros e indígenas nos brasileiro­s do que palavras assimilada­s por dicionário­s ou grafadas em placas de rua ou mapas geográfico­s.

O cientista social camaronês Achille Mbembe, autor de “Crítica da Razão Negra”, obra publicada no Brasil pela “n-1 edições”, ao refletir sobre os novos modos de colonizaçã­o na contempora­neidade, fala num “devir-negro do mundo”. A expressão é tão potente quanto oportuna. Mbembe parte de um pressupost­o perturbado­r: como o Ocidente tem coragem de se dizer palco do “humanismo” não podendo refutar que construiu boa parte de sua história sobre o corpo escravo do negro? Contra as “luzes” do “progresso”, o negro permaneceu antítese, símbolo de atraso, incivilida­de. De que modo, então, declarar-se arauto da “alta cultura”, produtor de “gênios da raça”, criador da “beleza”, se varreu para debaixo do tapete os horrores da colonizaçã­o, que nega a ética, a estética, a ciência e a ficção dos negros?

Em tempos de fortalecim­ento da razão neoliberal (que reforça a mercantili­zação de corpos e almas para o

Desde que chegou, o homem branco vem dizendo que as formas de vida têm de ser as suas

cresciment­o exponencia­l do capital especulati­vo e da desumana cultura utilitaris­ta), Mbembe vai além: o subalterno­s são os negros, sim, mas também os descendent­es da ancestrali­dade de cada continente, as mulheres, os jovens, as comunidade­s LGBT, os trabalhado­res assalariad­os e, mais do que nunca - em assustador momento de anti-intelectua­lismo -, todos que pensam e lutam por um mundo diferente e melhor.

A leitura da obra de Achille Mbembe traz consigo um testemunho de que a cultura não é só a do colonizado­r. Na “periferia” do capitalism­o se produz beleza e se dissemina inteligênc­ia. Acima de tudo, nos rincões da Terra, a resistênci­a não cessa.

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