Vidas salvas pela solidariedade
Mulher que doou rim para ex-marido, pai que recebeu o órgão do filho e um jovem londrinense que salvou a vida de uma menina da Bahia; histórias inspiradoras e de esperança
Neste Natal, a FOLHA traz histórias inspiradoras de doações de órgãos em vida, como a da mulher que doou o rim para o ex-marido e a do filho que salvou a vida do pai. Euclydes Ramos Júnior, 54, teve a saúde restabelecida após receber o rim de Isaías da Silva Ramos, 31 (foto). “Hoje a gente até brinca que tem um pedaço dele dentro de mim”, conta o pai. Segundo a Central Estadual de Transplantes, o Paraná possui hoje 1.332 pacientes na lista de espera de rim, 192 de fígado e 22 de coração
Nem sempre quando um relacionamento termina significa que a história de amor chegou ao fim. Esse amor pode se transformar em uma grande amizade. No caso do mecânico Claus Ziegelmaier, 46, pode-se dizer ela permanece viva em seu rim, já que recebeu um deles da ex-mulher Elizabeth Caper Claro, 44, com quem namorou por oito anos e ficou casado por nove anos. Eles não tiveram filhos e estão divorciados há 12 anos. O caso é bastante raro. Segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), 79% das doações de rim feitas em vida são de parentes; 14,64% de cônjuges e somente 6,27% não possui parentesco algum.
Segundo a mulher do mecânico, Amanda Ziegelmaier, 33, tudo começou quando a família estava viajando e ele passou mal. “Ele estava com muita febre, mas não queria ir ao médico. No quarto dia depois desse episódio, ele foi ao hospital, fizeram uma biópsia e detectaram que tinha glomeruloesclerose segmentar e focal”, lembra ela, informando que isso aconteceu há quatro anos. Trata-se de uma doença renal caracterizada por cicatrização (esclerose) e endurecimento de um segmento de alguns glomérulos renais. Os glomérulos filtram o sangue para remover substâncias indesejadas pela urina. “É uma doença autoimune. O organismo do Claus estava rejeitando o próprio rim. No fim do ano passado, a médica pediu para mobilizar toda a família, porque ele teria de fazer hemodiálise e logo o transplante seria necessário”, relembrou.
Ziegelmaier afirmou que o processo de se submeter à hemodiálise era muito desgastante. “Embora filtre o sangue, traz problemas para o coração, para o fígado e para o pâncreas. Quanto mais tempo passa, mas debilita o organismo da gente, já que a hemodiálise tira também as coisas boas do sangue”, explicou.”Mudou toda a rotina de nossa família. Ele sempre trabalhou e era provedor do lar. Agora eu passei a fazer tudo. Eu não podia doar o meu rim, porque não sou compatível. Desde o princípio foi aquela busca, mas todo mundo que cogitava doar não passava nos exames”, declarou Amanda.
Ela relatou que o estado do marido estava piorando, com anemia bem severa. “Se não melhorasse precisaria fazer transfusão, mas se isso acontecesse, ele não poderia fazer o transplante por seis meses. Nesse dia estava muito nervosa. Andava Calçadão, brigando com Deus por não poder fazer nada, quando a Elizabeth me viu”, descreveu. Quando soube o que estava ocorrendo, a exmulher perguntou a Amanda como poderia fazer os exames. “A Amanda ficou espantada de eu estar propensa a fazer isso. Quando me separei do Claus, foi de forma tranquila. A Amanda frequentava a mesma igreja que minha irmã e tínhamos amigos em comum. Acabamos nos tornando amigas também”, explicou. “Chorei. Fiquei bem emocionada. Voltei para casa correndo e dei a notícia para o Claus”, disse Amanda.
Além de Claro, outras três pessoas realizaram exames para avaliar a compatibilidade, mas deram negativo. Foram quatro meses de avaliações e exames. A torcida da família foi etapa por etapa. “Quando o médico disse que os exames apontaram 100% de compatibilidade, para falar a verdade eu nem acreditei, porque é uma surpresa. Como disse o médico, só um irmão para dar tão certo”, destacou o mecânico.
ALTRUÍSMO
Vencidas todas as etapas, a cirurgia foi realizada no dia 9 de novembro, no Hospital Mater Dei, em Londrina e Ziegelmaier recebeu alta no dia 30 de novembro. Um pouco antes da cirurgia, as macas foram pareadas e eles ficaram cinco minutos conversando. “O que ela fez por mim é um ato de amor que é incalculável. Eu falei para ela que Deus havia nos unido como marido e mulher, mas com o tempo nos separamos. Agora retornamos como irmãos de sangue. Nos colocou no mesmo caminho de novo”, destacou o mecânico, dizendo que este será um Natal muito feliz. “Agora espero me recuperar bem.”
Elizabeth Claro diz que “a ficha está caindo só agora.” “Não fiquei em dúvida por um segundo. E olha que tenho pavor de hospital. Fiquei mais nervosa com os exames. O meu medo era que não desse certo”, declarou.
Logo após a cirurgia, Arthur, 7, filho de Ziegelmaier e de Amanda, não pôde visitar o pai na UTI. Agora que ele recebeu alta, fica o tempo todo com ele. “Ele não quer nem sair de casa. Ele é a coisa mais preciosa que tenho”, declarou.
BALANÇO
O nefrologista da Iscal (Irmandade Santa Casa de Londrina), Getúlio Amaral Filho, ressaltou que o caso é bem raro. “A doação entre pessoas que não são parentes e não são casadas é de 2% a 3% dos transplantes. A atitude da Elizabeth é muito bonita. Uma atitude bastante altruísta, sem querer nada em troca, só para ajudar”, afirmou o médico, um dos responsáveis pela cirurgia.
De acordo com especialista, o caso tocou o coração de muitas pessoas. “Talvez as pessoas enxerguem que podem ajudar os outros, mesmo que não sejam muitos próximas”, destacou. A Santa Casa realizou em 2018 15 transplantes renais, cinco deles de doadores vivos. No acumulado desde 1985 a instituição já realizou 398 transplantes renais. O hospital também é habilitado a fazer transplantes de coração. Foram 59 casos desde 1994 e três deles somente em 2018.
Talvez as pessoas enxerguem que podem ajudar os outros, mesmo que não sejam muitos próximas”
Orepositor de produtos hortifruti Robson Carlos Santos, 24, mora em Londrina, a 2.300 km da estudante do terceiro ano do ensino fundamental Micaele Lorrana Santos, 11, que reside em Salvador (BA). Mesmo sem se conhecerem, Santos salvou a vida da jovem por ter doado sua medula óssea. A costureira Naiane Bárbara dos Santos conta que desde os três anos de idade sua filha Micaele apresenta problemas de saúde. Depois de sete anos de investigação ela foi diagnosticada com MSD (Síndrome Mielodisplásica), que pode progredir para uma leucemia. “Os tratamentos já não estavam tendo resposta. Ela já estava há sete anos em tratamento e não respondia mais aos medicamentos”, destacou.
Santos se cadastrou como doador de medula óssea em 2015, após ver uma campanha nas redes sociais. “Fui ao HU ( Hospital Universitário) para fazer o cadastro. Em 2016 me ligaram do Rio de janeiro e pediram para que eu fizesse exames naquela cidade. Fiz um exame e três meses depois pediram para que eu retornasse ao Rio para realizar mais exames. Constataram que eu era compatível com uma pessoa. Fiz a punção do osso do quadril. Não senti dor; é como se eu tivesse caído no chão e sentisse um incômodo por três dias. Tomei analgésicos”, relatou.
“Como eu fui um doador não aparentado, não podia conhecer quem seria o receptor por 18 meses. No começo de novembro deste ano fui conhecer a receptora da medula. Como ela tinha de retornar para Curitiba a cada seis meses, em uma dessas oportunidades o Instituto a União Traz a Cura (de Curitiba) bancou a minha passagem para ir conhecê-la na capital paranaense”, contou o jovem londrinense.
O encontro foi marcado por muito choro. Primeiro, Micaele não conseguia falar de tanto chorar. Depois de se recuperar, foi a vez de Robson perder as palavras em meio as lágrimas. “Os dois só conseguiram conversar por telefone quando ele já estava retornando a Londrina. Hoje eles se conversam diariamente. Viraram irmãos”, afirmou Naiane.
DISPONIBILIDADE
O médico hematologista pediátrico Lisandro Lima Ribeiro, do HC (Hospital de Clínicas) da UFPR (Universidade Federal do Paraná), que participou do transplante, destacou que o encontro foi um ato muito bonito de ambos. “Dele por ter doado a medula e salvado a vida de uma pessoa que nem conhecia. Dela por ter tido a iniciativa de querer conhecer o doador. A chance de encontrar um doador que não é parente não é tão grande. O Brasil possui o terceiro maior registro de doadores no mundo, mas considerando a nossa população poderia ser segundo lugar tranquilamente”, destacou.
O hematologista explicou que existem duas maneiras de realizar o transplante de medula óssea: por células tronco hematopoietica ou através de sangue periférico. “Pela medula óssea, o doador é levado ao centro cirúrgico, é feito um pequeno furo no osso do quadril, retira medula óssea e ela é armazenada em uma bolsa, que é recebido como se fosse uma transfusão de sangue. A outra maneira é pelo sangue periférico. O doador recebe medicação que faz com que a célula tronco saia da medula e uma máquina filtra essas células tronco, que depois são injetadas na corrente sanguínea do receptor e encontram o caminho da medula por conta própria”, relatou.
Segundo o especialista, desde 2008, quando não se consegue doador 100% compatível, é realizado transplante utilizando metade compatível. “Essa técnica é conhecida como transplante haploidêntico. Com isso, a disponibilidade aumentou ainda mais. Os resultados estão sendo equivalentes aos dos 100% compatíveis”, destacou.
“Ela já estava há sete anos em tratamento e não respondia mais aos medicamentos”