Folha de Londrina

A Variant do meu tio tinha xinil

- Fale com o colunista: avenidapar­ana@folhadelon­drina.com.br

Se eu disser que tomar “Ilmo” por abreviatur­a de “Excelentís­simo”, na crônica das palavras erradas, foi um erro proposital, vocês sete acreditam? Acabou ficando mais engraçado assim, não acham? Afinal, todo mundo sabe que “Ilmo” é abreviatur­a de Ilustríssi­mo...

E já que estamos falando de erros, na infância eu dizia “xinil” em vez de chenile. Para mim, xinil sempre foi o nome correto da capa de veludo alaranjada que cobria os assentos da Variant do meu Tio Machado. Quando eu viajava para Mirandópol­is nas férias, eu e meus primos vivemos boas aventuras a bordo dessa Variant. Lembro-me que no câmbio do carro havia um escorpião que me daria até medo de trocar de marcha, caso eu viesse a dirigir o veículo, algo que, como todos vocês sete sabem, jamais aconteceu. Mas, além do escorpião, havia a imagem de Nossa Senhora Aparecida pendurada no retrovisor, e ela nos protegia de todos os males.

Certa vez eu levei uma fita K7 do Queen para ouvirmos no caminho para a pescaria no açude da fazenda da Tia Lourdes. Botei “Play The Game” no toca-fitas, mas o Tio Machado não gostou muito da música: apelidou o grupo de “Joaqueen” e disse que a Perla cantava muito melhor. Mesmo assim, até hoje, quando ouço alguma canção com a voz do Freddie Mercury, penso no Tio Machado e nos lambaris que pescamos naquele açude. Atrás do açude, havia um bambuzal e um brejo. Mais adiante, víamos um terreiro de café. Aquelas pescarias eram inesquecív­eis; sempre sonho que estou lá, na fazenda da Tia Lourdes, e ouço a voz dos bambus em sua conversa indecifráv­el...

Quando voltávamos das pescarias, a bordo da Variant com xinil laranja (Tio Machado tinha substituíd­o a fita do Queen por uma da Perla), eu não via a hora de chegar na casa dos meus primos Beto e Renato para brincar com eles de Falcon. Cada um de nós tinha o seu Falcon, mas o do Beto era especial, por possuir cicatrizes de guerra (certa vez pegou fogo na barraca e o Falcon dele ficou chamuscado e absolutame­nte careca). Quando a brincadeir­a de Falcon terminava, eu ia até a estante para ler um dos livros da coleção do Júlio Verne. Sonhava com o dia em que poderia viver uma aventura tão emocionant­e quanto “Vinte Mil Léguas Submarinas” ou “Viagem ao Centro da Terra”. Nem imaginava que a maior aventura era a própria infância...

O lanche da tarde era na casa da Tia Ruth e da Tia Iete, perto da Igreja e na frente do Fórum. Tomávamos Coca-Cola e comíamos bolo (não sei por quê, mas até a Coca-Cola parecia mais gostosa na casa das minhas tias). Depois do lanche eu ia para o quartinho dos fundos, onde estava a coleção “Curiosidad­es”, 11 volumes de capa vermelha e branca, com pequenos toques de prata. Certa vez li quais foram as últimas palavras de grandes personagen­s da história, e um dos casos me chamou a atenção. Eram as últimas palavras de um obscuro Goethe: “Mais luz, mais luz!”

O sino da Igreja tocou.

Eram seis horas, no horário de Deus.

 ?? Shuttersto­ck ??
Shuttersto­ck

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil