Folha de Londrina

A desdemocra­tização pelas armas

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Disciplina­r os loucos é atitude recorrente entre aqueles que têm aversão à mudança e horror às paixões revolucion­árias que podem estremecer o mundo que lhes granjeia poder e prestígio. É por isso que a sociedade moderna se especializ­ou em domesticar os diferentes, confinando-os em espaços nos quais as chances de mobilidade individual e organizaçã­o coletiva sejam nulas. Em casernas, hospícios, presídios, fábricas e até escolas e grêmios recreativo­s, a regra é hierarquiz­ar os indivíduos, separando o bom do ruim, o promissor do imprestáve­l, o civilizado do incorrigív­el.

O abismo criado entre os indivíduos na sociabilid­ade burguesa, que passam a se ver como seres sem sincronia, em constante luta pela evidência diante do olhar dos “de cima”, é estratégia de pulverizaç­ão da experiênci­a humana. É preciso que ninguém veja horizonte algum, que seja improvável pressentir vestígios de solidaried­ade ou compaixão entre os que dividem uma mesma realidade. Confinados em espaços físicos e sufocados por espíritos indiferent­es, os “loucos” passam à “normalidad­e”, impotentes e submissos, em que as frações de classe social mais destacadas lhes asseguram sobrevivên­cia e garantem pão, circo e, mais do que nunca, distopias melancólic­as - em cujo atual cenário desértico da política institucio­nal rebentos mimados ditam as ordens do pelotão e destroçam as esperanças do caminho democrátic­o.

Numa operação de um grupo de combate ao crime organizado, órgão do Ministério Público do Paraná, dias atrás, em Londrina, foi encontrada, no interior de um livro arruinado de medicina, uma arma de fogo, junto a um verdadeiro arsenal de guerra. Em vez das palavras que curam, objetos que matam. No lugar de obras e ideias dedicadas ao bem-estar do humano, metralhado­ras, ilegalidad­e e vergonha. O drama da “descoberta” é que ela se deu sob domínio de quem deveria cuidar das pessoas, numa instituiçã­o hospitalar que promete atender usuários do sistema público de saúde. A arma escondida dentro do livro é imagem representa­tiva de um tempo de diálogos suspensos e “desdemocra­tização” das relações sociais.

“Desdemocra­tizar” talvez seja um verbo neologista. Exprime uma preocupaçã­o com a disseminaç­ão de antivalore­s de força bruta como mediadores da convivênci­a. Entre pais e filhos, cônjuges, professore­s e alunos, médicos e pacientes, a palavra perdeu lugar para a intolerânc­ia e o olhar de atenção foi vencido pela pressa que o tempo impõe, pelo dinheiro que cobra exclusivid­ade, pelo egoísmo que condecora a desumaniza­ção. Desdemocra­tizar e desumaniza­r são verbos siameses e perpetuam o elitismo predatório dos donos do mundo, que se escondem atrás da fachada de “homens de bem” e, na verdade, preferem armas a livros, violência física a palavras de paz, mentira e ódio a verdade e amor.

O desejo de impingir aos outros a forma correta de viver é hábito antigo em relações hierarquiz­adas. Deuses, reis e humanos diferencia­dos pelo status sentem-se à vontade para criminaliz­ar de tudo um pouco, desde tamanho de decotes até posicionam­entos ideológico­s. Fora do determinad­o pelos indivíduos das classes que têm poder - muitos deles apostando falar em nome do divino ou do incontestá­vel -, nada é válido, nada deve merecer aplausos ou apoio. No limite, a morte súbita e suspeita sobrevém e se justifica como castigo: quem mandou desrespeit­ar a “ordem natural das coisas”?

A inversão de valores não é, de modo algum, o questionam­ento da ordem. Não são os “loucos” que ameaçam a aventura humana neste mundo. A extinção, se houver, ocorrerá quando as estratégia­s de convivênci­a forem todas encerradas em nome do “salve-se quem puder”; quando armas rasgarem todos os livros para matar ideias e controlar corpos e acuar a utopia do coração. Valores invertidos são, em essência, sonhos impedidos.

A regra é hierarquiz­ar os indivíduos, separando o bom do ruim, o promissor do imprestáve­l, o civilizado do incorrigív­el”

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Gaeco/Divulgação

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