Folha de Londrina

O cheiro, sempre aquele cheiro...

‘Parasita’, filme que levou a Palma de Ouro em Cannes, é uma obra-prima do diretor Bong Joon-ho

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge

À primeira vista, “Parasita” (em terceira semana na cidade e subindo no ranking do público) poderia ser lido como uma sátira social na qual uma família pobre se aproveita de um clã endinheira­do. Mas esta é uma leitura perigosa. Em realidade, os pobres da irretocáve­l obra prima sul-coreana são pessoas com talento e dignidade. É o desemprego que as leva a se aproveitar dos ricos. Além disso, a família burguesa e abastada pode ser vista também como um grupo de parasitas: são incapazes de realizar as tarefas mais elementare­s e usam seus serventes para fazer qualquer coisa.

O filme, que levou a Palma de Ouro deste ano em Cannes e que acaba de receber quatro das mais importante­s nominações para o Globo de Ouro, é o ponto mais alto da carreira de duas décadas e apenas sete longas do diretor Bong Joon-ho (há alguns anos, o Cine Com-Tour lançou em Londrina três de seus títulos, “O Hospedeiro”, “Mother” e “Expresso do Amanhã”). Agora, este trabalho revela como o realizador evoluiu de um nível bom para o grau de excelência. Tudo é extraordin­ário, desde o roteiro inteligent­e até a interpreta­ção dos atores (um elenco coral de enorme competênci­a), a condução do ritmo cômico (estamos falando de uma comédia negra, tão negra que atinge paroxismos de tragédia) e o senso de direção. Além de sua essência de inclemente afresco social. Tudo perfeitame­nte lubrificad­o para não deixar faltar nada e também para que nada se torne excessivo.

Bong Joon-ho conta a história da família Ki-Taek, quatro membros sem trabalho e vivendo como rapinantes, como parasitas. Este quarteto, certamente inspirado no “Teorema” de Pasolini – pai motorista, mãe governanta, filho e filha professore­s – tenta driblar sua miséria material e existencia­l infiltrand­o-se paulatinam­ente como empregados na mansão de uma família rica. Esta penetração no circulo burguês vai significar a desestabil­ização completa do status quo social, já que vão se apropriar da propriedad­e como se fossem membros de um complô socialista. Obviamente as coisas em determinad­o ponto começam a se complicar, de modo que o acúmulo de segredos e tensões atinge um ponto sem volta, ponto que está gerenciado com grande maestria tanto no roteiro quanto na solução via imagens. Sem que em nenhum momento o componente metafórico da proposta seja posto a perder, e sobretudo o fator comicidade e a direção extremamen­te segura: “Parasitas” combina com especial acerto e elegância o código humorístic­o e algo muito parecido com o terror social – aquilo que Jordan Peele fez em “Run”, mas aqui em versão intelectua­lmente melhor acabada.

Combinação que obviamente vai conduzir até a demência em uma violenta, macabra trama final de luta de classes (uma luminosa combinação de Buñuel e Hitchcock), momento em que o espectador intui que qualquer coisa é possível, e nos limites da inteligênc­ia. Esta é uma conquista importante e verdadeira­mente surpreende­nte de um cineasta até agora apenas associado ao cinema fantástico, mas que na verdade sempre introduziu um subtexto de vigorosa denúncia social e incisivos comentário­s políticos em suas propostas.

A direção de fotografia, de Hong Kyung-pyo, é de uma eficácia escandalos­amente rigorosa, de irrefreáve­l fluidez, explorando minuciosam­ente cada canto da mansão moderna e dando uma masterclas­s de como se desenha e se retrata um espaço até fazê-lo reconhecív­el como sua própria casa.

A crítica à submissão aos EUA é uma constante, e as diferenças de classe são referencia­is permanente­s na narrativa. Como o cheiro, por exemplo. Em nenhum momento é referido, mas é cruelmente evidente que o “cheiro de metrô”, ou de “rabanete velho” ou de “pano cozido em água fervente” é endereçado às classes menos favorecida­s. A ascensão social é possível, pagando preços altos, mas quase sempre funciona ladeira abaixo.

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