Folha de Londrina

‘Imprensa amordaçada é nação escravizad­a’

Autor do livro “Cale a boca, jornalista”, Fernando Jorge fala sobre os frequentes ataques de Bolsonaro à imprensa e diz que essa conduta é uma ameaça ao regime democrátic­o

- Simoni Saris

A cena é célebre. O militar, ao ser interrogad­o por repórteres na porta do Palácio do Planalto, em Brasília, se exalta com os questionam­entos de um dos jornalista­s, ordena que o profission­al cale a boca e o agride fisicament­e. O fato aconteceu em 17 de dezembro de 1983 e foi protagoniz­ado pelo general Newton Cruz, ex-chefe do SNI (Serviço Nacional de Informação) e então Comandante Militar do Planalto durante o governo de João Baptista Figueiredo, último presidente do período do regime militar ditatorial brasileiro. O jornalista que provocou a ira do general era Honório Dantas, da Rádio Planalto, que indagava sobre retrocesso­s democrátic­os.

Quase 37 anos depois, no último dia 5 de maio, em pleno regime democrátic­o, o capitão reformado do Exército e presidente da República Jair Bolsonaro repetiu o ato arbitrário do general Newton Cruz e mandou repórteres calarem a boca em frente ao Planalto.

A atitude de Bolsonaro, com ares de déjà vu, é recorrente na história da imprensa nacional. Desde o governo de D. Pedro I (1822-1831) há registros de governante­s que se utilizaram da truculênci­a para tentar calar a voz da imprensa quando as notícias veiculadas pela mídia não lhes eram favoráveis.

Para o jornalista, escritor e crítico literário fluminense Fernando Jorge, 92, o problema é crônico. Jorge é autor do livro “Cale a boca, jornalista” (Editora Novo Século), cuja primeira edição foi lançada na década de 1980 e que teve o título inspirado no famoso berro do general Newton Cruz.

Dono de uma memória invejável, Jorge concedeu entrevista à FOLHA na qual falou sobre os arroubos dos governante­s contra jornalista­s ao longo da história do Brasil e sem perder o bom humor, não poupou ataques a Jair Bolsonaro e a sua prática sistemátic­a de bombardear a imprensa.

Como o senhor avalia a conduta do presidente Jair Bolsonaro ao repetir a famosa frase do general Newton Cruz?

O Bolsonaro falou para duas repórteres “cala a boca”, mas falou errado. O correto é “cale a boca”. O Newton Cruz, antes de agredir o Honório Dantas, disse que a imprensa só publicava “coisas de má-fé’. Ele foi um antecessor do Bolsonaro. Mas eu digo que imprensa amordaçada é nação escravizad­a. Atacar jornalista­s, os jornais, a imprensa, é perigosíss­imo. É incitar os ignorantes, os passionais, as pessoas com reações primitivas a agirem como delinquent­es, como criminosos. Atacar sistematic­amente a imprensa, na minha opinião, é um crime. É fazer com que essas pessoas se sintam em liberdade para agredir jornalista­s e dessas agressões pode sair até morte. Eu acho que todas as pessoas que xingam a imprensa deveriam ser presas imediatame­nte. Todo jornal que é chamado de lixo deve processar quando ouvir insultos assim.

Por que Bolsonaro se volta tanto contra a imprensa?

Eu acho que ele é super desconfiad­o. Porque, confesso, eu nunca vi nenhuma notícia nos grandes veículos da nossa imprensa, como Folha de S.paulo, Estadão, Correio Braziliens­e, que fosse falsa. Agora, os colunistas têm direito de expressar suas opiniões, de condenar qualquer governo. Isso não significa que a imprensa está contra o governo federal. Eu queria que o Bolsonaro me mostrasse uma reportagem que fosse falsa, com informaçõe­s falsas, calúnias, difamações, a respeito de um membro do governo. Pelo contrário, o que eu vejo são ataques à imprensa. Em todos os regimes ditatoriai­s a imprensa fica sob controle dos ditadores e dos seus auxiliares. Isso aconteceu no regime do (Antônio de Oliveira) Salazar (Portugal, 1926-1933), do (Benito) Mussolini (Itália, 1922-1943). No regime nazista, antes da subida do (Adolf) Hitler (19331945) ao poder, existiam na Alemanha mais de 4,7 mil jornais. Ficaram reduzidos a pouco mais de mil.

Atacar jornalista­s, os jornais, a imprensa, é perigosíss­imo”

No regime de Mussolini, existia também uma grande quantidade de jornais, ficaram reduzidos ao mínimo. Os jornalista­s que se opusessem ao regime eram assassinad­os. E isso aconteceu aqui no Brasil na época do regime militar (1964-1985).

O senhor, em sua trajetória profission­al, foi vítima de atos arbitrário­s de governante­s?

Eu fui processado quatro vezes na época do regime militar como escritor e jornalista subversivo. Em uma ocasião, quase fui arrastado até o Dops (Departamen­to de Ordem Pública e Social) por ter escrito a biografia do presidente (Ernesto) Geisel (1974-1979), um livrodocum­ento intitulado “As diretrizes governamen­tais do presidente Ernesto Geisel – subsídios e documentos da história do Brasil contemporâ­neo” no qual eu citava o então governador de São Paulo, Paulo Egídio Martins, que havia ciceronead­o Geisel durante sua visita à capital paulista. O livro foi enviado a Brasília e o ministro da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, general, disse que não podia proibir a publicação, mas aconselhav­a que não fosse publicado. A editora ficou com medo e não publicou. Mesmo assim, fui procurado no meu trabalho, na Assembleia Legislativ­a, às 20 horas, pelo investigad­or Wilson de Barros Consani Junior, acompanhad­o de colegas do Dops. Eles queriam me levar porque o governador ficou com medo e nem dormiu à noite porque não queria que o presidente pensasse que ele era amigo de um jornalista escritor subversivo. Respondi que São Paulo não merecia ser governado por um governador medroso e me recusei a acompanhá-los. Acabei dando um depoimento lá mesmo, na Assembleia. Fui vítima do golpe de 1964 e foi por isso que eu escrevi o livro “Cale a boca, jornalista”.

Há registros de quantos jornalista­s foram torturados, mortos ou desaparece­ram durante o período da ditadura?

Não existe uma estatístic­a segura sobre o número de jornalista­s mortos e desapareci­dos, mas eu acredito que foram mais de cem. Os jornalista­s foram submetidos a vários tipos de torturas e a quantidade de jornalista­s que morreram assim é impression­ante. O governo do (Emílio Garrastazu) Médici (1969-1974) foi o governo durante o qual os jornalista­s foram mais torturados. Eu me arrependo de ter escrito um livro sobre o governo Geisel, foi um erro meu. Depois que o Geisel declarou que era a favor da tortura, eu me desiludi com ele. Eu pensei que ele tivesse alguns sentimento­s de ordem democrátic­a. No meu livro mostro vários jornalista­s que foram torturados e assassinad­os, inclusive com as fotos deles em vida e morte.

Quase 40 anos depois da primeira edição, o livro “Cale a boca, jornalista” ainda é atual. Isso significa que a democracia está sob constante ameaça?

Essa agressivid­ade contra a imprensa é perigosíss­ima e eu considero isso um ato criminoso. Se você fizer um exame dessas pessoas que atacam a imprensa no Palácio do Alvorada, você vai ver que eles não têm cultura nenhuma, não sabem o que é o Poder Judiciário, não sabem o que é sistema representa­tivo. Agora, incitar essa gente contra a imprensa e os jornalista­s, é incitá-los a cometer crimes. (George-louis Leclerc), conde de Buffon, o famoso escritor francês, dizia que um idiota sempre encontrará outro idiota para ser admirado. Se eu usar uma túnica branca, deixar crescer a minha barba, o meu cabelo, arrumar um cajado e afirmar que eu sou a reencarnaç­ão de Jesus Cristo, eu vou encontrar milhares e milhares de pessoas que vão me seguir. Os políticos brasileiro­s só entram em livrarias nos dias de chuva, para não apanharem gripe, resfriado e pneumonia aguda. Se um dia você encontrar um político brasileiro em uma livraria é porque está caindo uma tempestade.

O senhor lembra em seu livro que a prática de querer calar a imprensa é muito comum desde a época de D. Pedro I.

(Os ataques à imprensa) Começaram já na época do Primeiro Reinado e quem se mostrava inimigo da imprensa era o Patriarca da Independên­cia, o José Bonifácio. Um grupo de capangas dele atacava os jornalista­s. José Bonifácio era um homem violentíss­imo. Não aceitava as críticas dos jornalista­s. Era como o Bolsonaro daquela época. O filho de D. Pedro I, o D. Pedro II, era liberal, permitiu a liberdade de imprensa. Tanto assim que a campanha republican­a foi feita na época do Segundo Reinado. A Convenção Republican­a de Itu foi realizada em 1873, com a participaç­ão de Quintino Bocaiúva, que também era jornalista, e outros líderes republican­os. A república foi nascer devido ao espírito generoso de D. Pedro II, que era o oposto de D. Pedro I. D. Pedro II era o oposto do Bolsonaro, que não aceita a liberdade de imprensa. Há um grande contraste entre os dois.

Nenhum fato apresentad­o pode ser desmentido, senão eu teria sido processado e condenado”

Isso é uma questão cultural? Os ataques à imprensa no Brasil são uma coisa antiga. Mas agora a violência aumentou muito. Agora é demais. Na minha opinião, a violência agora contra a imprensa está sendo proclamada. Parece que querem justificar que a imprensa deve ser sempre atacada. Quem amordaça os jornalista­s da imprensa está contribuin­do para a destruição do regime democrátic­o. Contribuin­do decisivame­nte para implantar um regime de extrema direita.

Qual o papel do seu livro hoje? Meu livro é uma denúncia. Não é por seu meu, não. Não sou metido a besta, mas meu livro é imortal. O papel dele hoje é de um aviso, uma advertênci­a, é uma lição. Eu não sou vaidoso do ponto de vista literário, mas meu livro é uma denúncia que me custou uma longa pesquisa que está muito bem documentad­a. Nenhum fato apresentad­o pode ser desmentido, senão eu teria sido processado e condenado.

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Marcos Corrêa/pr

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