Folha de Londrina

As águas de Olga Savary

- Célia Musilli é editora da Folha 2. Escreve na edição de fim de semana email: celia.musilli@gmail

Ela fez parte de uma geração de grandes poetas. Contemporâ­nea de Hilda Hilst, tinha a mesma verve para a poesia erótica, viva. Próxima da natureza desde o nascimento em Belém do Pará, dedicou poemas aos quatro elementos, com excepciona­l preferênci­a pela água que bebia e celebrava com uma intimidade arrebatado­ra.

A poeta Oga Savary morreu no último dia 15, aos 86 anos. Mais uma vítima da covid-19, mais uma grande perda para a cultura brasileira pela mesma doença que levou Aldir Blanc, o escritor Sérgio Sant’anna e tantos outros nomes que formam uma constelaçã­o nacional de pessoas eternament­e amadas por sua arte.

Olga foi imensa como poeta, contista, tradutora. Publicou 14 livros só de poesia, incluindo “Repertório Selvagem”, de poesia reunida, publicado em 1998.

O livro de estreia “Espelho Provisório” lhe deu um Jabuti de escritora revelação em 1971. E seguiram-se outros premiações importante­s como a de 1977, concedida pela Associação Paulista de Críticos de Arte, de melhor livro de poesia por “Sumidouro”. Este último livro foi um dos publicados por um editor que marcou época: Massao Ohno, reconhecid­o pelo olhar afiado para identifica­r talentos e pela edição de fina estampa que dava aos livros. “Sumidouro”, do qual tenho um exemplar autografad­o, comprado em sebo, traz ilustraçõe­s de Aldemir Martins, o que confere sofisticaç­ão aos poemas naturalmen­te refinados de Savary.

Entre os livros marcantes, ela também publicou “Altaonda” (1979) e “Magma” (1982) , considerad­o o primeiro livro de poesia erótica editado por uma mulher no Brasil. Em “Linha d”água” (1987), outro livro da autora, encontramo­s o elemento água, evocado no título e nos poemas, numa fluidez que se encaixa ao movimento dos amantes, fazendo do amor um rio que corre.

Carlos Drummond de Andrade teve uma paixão por Olga, ela saia à francesa das investidas do poeta, tratando-o como amigo. Ela mesma conta a história numa entrevista dada à revista Marie Claire em junho de 2011: “(era) Amicíssimo. Nunca me atraiu como homem, mas sempre mexeu comigo. Como poeta era de tirar o fôlego, mas ele não gostava nada dessa história. Eram outras suas intenções (risos). Uma vez, na fila do banco, eu disse a ele que adorava a amizade amorosa que havíamos construído. Ele ficou furioso : ‘Amizade amorosa coisa nenhuma, isso é amor.’ Fiquei muda, passada. Drummond era discretíss­imo, tímido, mas naquele momento se tornou um alucinado, gritava em plena fila do banco.”

A poeta que partiu neste mês de maio, também teve uma sólida carreira como tradutora, sobretudo para obras de escritores hispano-americanos. Constam na lista de livros traduzidos por ela obras de Borges, Cortázar, Fuentes, Semprúm, Octavio Paz, Vargas Lhosa, entre outros.

Mas sua melhor lembrança serão sempre os poemas cheios de imagens.

ATURVAL

Paraíso é essa boca fendida de romã

- bagos de vida, paraíso é esse mistério de água ininterrup­ta fluindo do terminal das coxas, é a vulva possuída-possuindo violáceo cacho de uvas, é esse dorso de vinho navegável atocaiado para um crime

(Olga Savary)

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