Folha de Londrina

Livro infantil retrata medo e coragem sem cair em moralismo

- Bruno Molinero

A certa altura de “Grande Sertão: Veredas”, Riobaldo crava que a “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquiet­a, o que ela quer da gente é coragem”. Já em “Clara e o Homem na Janela”, esse pensamento parece ganhar um complement­o. “Coragem é a força de viver do jeito que uma pessoa quer, por aquilo em que acredita”, diz aquele tal homem.

Mas, antes de mergulhar na coragem, é importante dizer algumas coisas e não calçar os sapatos antes das meias. “Clara e o Homem na Janela” é o lançamento da argentina María Teresa Andruetto, vencedora do prêmio Hans Christian Andersen, considerad­o o Nobel da literatura para crianças e jovens. Ilustrada pela também argentina Martina Trach, a obra chega agora ao Brasil pela editora Amelì.

Na história, a menina vive numa região repleta de casinhas espalhadas, chão seco e poucas árvores, brincando de riscar com graveto a poeira que ganha forma nas ilustraçõe­s de tons terrosos - imagens quebradas só pelo branco reluzente das roupas lavadas e dobradas que Clara entrega de quando em quando para o homem na janela.

Logo que deixa a encomenda na soleira da porta dele, ela recolhe o pagamento, deixado sempre embaixo do capacho. Até que um dia o homem que vive trancado surge na janela. E entrega um livro para a menina. E outro. E outro.

Surge então uma relação de confiança entre as personagen­s costurada pela leitura, o que faz a garota questionar se o homem sempre viveu preso. É agora que voltamos àquela história da coragem.

O enclausura­do conta que antigament­e saía normalment­e à rua, mas que uma história de amor fez com que ele chegasse a esses momentos da vida que Guimarães Rosa descreveu no “Grande Sertão: Veredas” como instantes em que tudo aperta e desinquiet­a. “Eu não tive coragem”, diz o homem para Clara.

Embora o personagem diga isso, o livro traz muito desse sentimento em suas escolhas.

Mas a coragem surge também nas ilustraçõe­s, que não são reféns das palavras, embora esse seja um livro sobre livros.

Mas a coragem está sobretudo na relação com o leitor. O livro não abre concessões, não fecha a leitura numa interpreta­ção, não subestima a inteligênc­ia. Por não ser fácil e ser destinado sobretudo às crianças, exige a existência de duas figuras difíceis de encontrar no atacado -opaiatento­eoprofesso­rinteressa­do.

Afinal, parafrasea­ndo “Grande Sertão”, o importante num bom livro não está no começo nem no fim, nas letras nem nos desenhos, nos fatos nem na sinopse - está no meio da travessia.

SERVIÇO

Clara e o Homem na Janela

Autor: María Teresa Andruetto e Martina Trach

Editora: Amelì

Tradução: Lenice Bueno

Preço: R$ 49 (48 págs.)

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