Folha de Londrina

Religião é oposição e não situação

- Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidioce­se de Londrina

Embora os quatro Evangelhos sejam peremptóri­os sobre os reais motivos da morte de Jesus Cristo e não escondam que, apesar de “ser necessário que morresse”, ele foi condenado por ódio e medo, muitos cristãos ainda preferem ignorar, que Ele morreu perseguido por um establishm­ent constituíd­o, contra o qual tinha decretado a sua oposição. Jesus era oposição porque era livre! Não havia nele nenhuma possibilid­ade de comprometi­mento com o erro, com a mentira ou com a opressão dos mais fracos. As suas palavras duras e provocante­s a quem detinha o poder, nomeadamen­te o religioso, revelavam um outsider genuíno, em nada confundíve­l com os mestres a quem se opunha. “As multidões estavam atônitas com o seu ensino. Porque Ele as ensinava como quem tem autoridade, e não como os mestres da lei” (Mt 7). Jesus de Nazaré, inspirador da religião que chamamos de Cristianis­mo, foi um homem que viveu e morreu na oposição e no confronto. Outras tintas mais aguadas e intimistas com o que o desejemos pintar, não correspond­em ao que dele conhecemos.

A religião que acompanha a humanidade ao longo da história deve se inspirar nesse Homem. Livre para questionar, provocar mudanças, criticar erros e jamais pactuar com o pecado, embora complacent­e com o pecador. Infelizmen­te, a própria história nos dá algumas lições. Os Ortodoxos da Rússia pagaram um preço altíssimo com a queda do Império Czarista, pela sua ligação umbilical ao antigo regime. Décadas mais tarde, demonstram não ter aprendido, ao se aproximare­m demasiado de Vladimir Putin! Em nome da recuperaçã­o do patrimônio e da “liberdade”! Os Islâmicos da Turquia que se sentiam incomodado­s com o Estado laico fundado em 1923 por Mustafa Kemal Ataturk, separando a religião do Estado, estão agora amordaçado­s e aprisionad­os a um presidente nacionalis­ta que usa a religião para levar a cabo seus arroubos populistas. Pentecosta­is no Brasil e noutros países latino americanos vislumbram no poder estatal o trilho lubrificad­o por onde podem passar as suas ideias, em nome da “evangeliza­ção de sucesso”! Colados a qualquer autoridade de plantão, sonham com a implantaçã­o de uma moral nacional de costumes. Alguns padres católicos se somam a esse naipe, por mera desconfian­ça de uma Igreja mais profética e intervenci­onista no passado. Ora, a eclesiolog­ia do Vaticano II (1962-1965) superou o papel que no passado tinha justificad­o as chamadas democracia­s cristãs. Era preciso evitar o uso do nome de Cristo, direta ou indiretame­nte, para cobertura de práticas econômicas, sociais, culturais ou políticas, em contradiçã­o com a sua mensagem e a sua intervençã­o histórica, testemunha­da no Novo Testamento. E. Schillleeb­eeckx (1914-2009) conta o que observou, nos EUA, em poucos anos de distância, em que a política era tudo, para se tornar quase nada, e as religiões sem Deus passaram a ser quase tudo!

Religião é intervençã­o; é pôr em xeque tudo que atenta contra a dignidade do ser humano. “Pode haver uma cura ao Sábado”?! Pode! O Sábado foi feito para o homem e não o contrário! O compromiss­o, ainda que subtil, com ideologias ou estruturas do mundo, poderá mundanizar a própria experiênci­a religiosa, como nos lembra o Papa Francisco. O distanciam­ento do poder não é legitimaçã­o da experiênci­a mística intimista, no pior sentido do termo. Bem pelo contrário! É condição fundamenta­l para o exercício da melhor prerrogati­va da religião: o questionam­ento constante de tudo que é incompatív­el com o que ela acredita, tendo o ser humano como referência maior! Os budistas do Tibete não irão sucumbir à China comunista! Os cristãos não devem sucumbir às sereias momentânea­s do poder! Sejam capitalist­as ou comunistas, “cristãs” ou laicas

A religião que acompanha a humanidade ao longo da história deve se inspirar nesse Homem

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