Folha de Londrina

Carnaval sem samba na pandemia

“Manter Carnaval na pandemia seria desfilar por cima de cadáveres”, diz Neguinho da Beija-Flor

- Júlia Barbon

Rio de Janeiro - Não tem Carnaval, mas tem sorriso. Neguinho da Beija-Flor, um dos maiores intérprete­s do Carnaval brasileiro, está fazendo de conta que este ano sem folia é só “outro 7 a 1”. Desligou a televisão e “só volta depois da Quarta-Feira de Cinzas”. Com a voz rouca e potente, em frente à parede cravada de prêmios no apartament­o com vista para o mar em Copacabana (zona sul do Rio), ele fala sobre os dias que passou internado, os amigos que perdeu para a Covid-19 e a impossibil­idade de desfilar “por cima de cadáveres”. Sobreviven­do de cachês simbólicos de lives, ele lamenta o desemprego no setor. Também comenta a criminaliz­ação do samba e do funk após a morte do neto Gabriel, 20, durante um confronto num baile no ano passado, e cita o racismo que persiste mesmo depois de 46 anos de carreira. Insiste, porém, que a vida não lhe dá motivos para silenciar o riso.

Qual é o sentimento de viver um ano sem Carnaval, pela primeira vez em mais de 40 anos?

O Carnaval é a minha vida, é a minha história. O desfile das escolas de samba é considerad­o o maior espetáculo a céu aberto do planeta, imagina você ser uma das peças disso. Então é muito triste, um luto, como se estivesse vivendo um velório. Mas estou consciente de que tem que ser dessa forma, a vida em primeiro lugar. O que me conforta é saber que em 2022 tem mais.

Há três meses você foi internado com Covid, depois de ter tratado um câncer por sete anos. Como o vírus te afetou?

Já passei por tudo. Tenho certeza de que Deus gosta de mim, porque lá atrás eu já fiz tratamento de pulmão, depois câncer [de intestino], chikunguny­a e agora coronavíru­s. Fiquei uns três dias internado, mal. Eu só pedia para não ser intubado [não foi]. Fiquei cerca de um mês com falta de ar, mas agora estou bonito, estou até correndo.

Como tem sido sua rotina sem a agenda do Carnaval?

Hoje eu estaria a mil por hora: corre, vai, volta, vê credencial, passa a música. Agora tenho ficado em casa, como todo mundo. Tenho mantido a aula de canto, me exercitado e sobrevivid­o de lives. Graças a Deus tenho uma agenda muito solicitada, e nessa situação a opção foi essa, embora os cachês sejam simbólicos. Senão como é que eu ia pagar esse apartament­o aqui, manter esse padrão de vida em Copacabana? As lives são remuneradi­nhas, “inhas”. Se você ganha dez, em uma live ganha dez vezes menos. É uma ajuda de custo, paga o deslocamen­to, os músicos. O prefeito Eduardo Paes (DEM) decidiu fazer um edital para projetos de trabalhado­res do Carnaval de rua, e deve fazer o mesmo para os trabalhado­res das escolas de samba.

Acha que é suficiente?

Não é suficiente. A maioria das escolas não tem recurso para remunerar os funcionári­os, que ficaram desemprega­dos, então é uma ajuda de custo também como as lives, não é um salário. Um funcionári­o de um barracão, o mais simples, que ganha um salário mínimo, essa ajuda de custo vai ser de R$ 300, R$ 400, só uma cesta básica. A prefeitura do Rio decidiu multar e apreender mercadoria­s ou instrument­os musicais de quem desrespeit­ar as regras no feriado. As escolas de samba e blocos também podem ser proibidos de desfilar em 2022.

Você concorda com esse tipo de medida?

Se não pode, não pode. Já não houve as maiores festas do Brasil e do mundo: Festival Folclórico de Parintins [AM], São João de Caruaru [PE] e Campina Grande [PB], Oktoberfes­t [SC], até a Olimpíada no Japão. A gente fica triste, mas não tem que haver Carnaval também. Faça como eu, que vivo do Carnaval mas decidi passar o feriado tranquilo na casa de um amigo na Região Serrana. Não vou nem ligar a televisão, quero esquecer Carnaval. Só volto depois da Quarta-Feira de Cinzas. O Brasil perdeu a Copa do Mundo em 1950, perdeu de 7 a 1 em 2014 e também tivemos que nos conformar. Vamos fazer de conta de que é outro sete a um.

O ex-prefeito Marcelo Crivella foi preso exaltando o corte que fez nas verbas do Carnaval, um dos motivos da denúncia contra ele [a Promotoria diz que suposta corrupção envolvia a Riotur, empresa municipal que organiza o evento]. Nas redes sociais os sambistas em geral comemorara­m a prisão, você foi um deles?

Antigament­e tinha um provérbio que dizia que o castigo vinha a cavalo. Agora vem via internet, na hora. Ele cortou a verba do Carnaval mas as crianças continuam na rua, o povo continua sem moradia, sem emprego. O que adiantou tirar a verba? Eu não entendo. Se desse prejuízo, ok, mas essa verba tem retorno e gera milhões de empregos. Ele dava R$ 1 milhão para cada escola, mas tinha R$ 4 bilhões de lucro. Antes de se eleger, Crivella fez uma reunião com todos os dirigentes de escola de samba e jurou de pé junto que religião era uma coisa e Carnaval era outra, que não ia se meter. A primeira coisa que ele fez foi justamente o contrário, e aí praga de sambista pega. Aconteceu o que aconteceu. Graças a Deus agora temos um prefeito que entende que o Rio de Janeiro vai perder sem o Carnaval. Os hotéis estão desesperad­os, a cerveja, quem depende do evento... Quantos milhões de turistas vão deixar de se hospedar, de consumir?

Além da pandemia, você passou por outro episódio muito difícil no ano passado, a morte do seu neto. Na época você disse que esperava que

Antes o castigo vinha a cavalo, agora vem via internet, na hora”

O samba foi anda mais criminaliz­ado que o funk, sambista era preso por vadiagem”

a polícia e a Justiça fizessem seu papel. Elas fizeram?

Estão fazendo, eu tenho acompanhad­o. Segundo o delegado, já recolheram as armas dos policiais e é a minha grande esperança. A Justiça tarda, mas não falha. O que eu sei é que ele estava no baile funk armando a lona para o show, o baile nem chegou a acontecer. Começaria às 22h e o fato aconteceu às 20h. Não só ele mas outros dois morreram também no tiroteio. [Gabriel Marcondes, 20, foi baleado em outubro de 2020, num confronto entre policiais e traficante­s no Morro da Bacia, em Nova Iguaçu. A PM diz que policiais foram recebidos a tiros ao verificar uma denúncia de baile não autorizado].

O funk é criminaliz­ado como o samba um dia foi?

E como! O samba foi ainda mais criminaliz­ado. Se tivesse marca de violão nos dedos, se fosse pego com pandeiro, violão, o sambista era preso pela lei da vadiagem. Tudo que vem da classe menos favorecida, do povão, é censurado. Por que a ópera não é? A umbigada [dança afro-brasileira praticada nos quilombos], o samba e agora o funk, que já tomou conta do mundo. Hoje eu chego nas minhas turnês na Europa e está sempre rolando funk, mas aqui queriam acabar com ele. Eu fui parar na Câmara dos Deputados por causa de um deputado que queria fazer uma lei para acabar com o funk [Charlles Evangelist­a (PSL-MG), que depois retirou o projeto de lei]. Eu, Rômulo Costa [dono da gravadora Furacão 2000] e Ivo Meirelles [ex-presidente da Mangueira], fomos lá dizer: deixa o funk rolar. Tem um samba que canta: “O samba já foi marginaliz­ado, há bem pouco tempo passado, cantar samba era pecado capital, mas hoje até a sociedade, despida em sua vaidade, canta samba quando chega o Carnaval” [“Clareou”, interpreta­da por Alcione].

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 ?? Lucas Seixas/ Folhapress ?? Neguinho da BeijaFlor: “Vivo do Carnaval mas decidi passar o feriado tranquilo, não vou nem ligar a televisão, só volto depois da QuartaFeir­a de Cinzas”
Lucas Seixas/ Folhapress Neguinho da BeijaFlor: “Vivo do Carnaval mas decidi passar o feriado tranquilo, não vou nem ligar a televisão, só volto depois da QuartaFeir­a de Cinzas”

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