Folha de Londrina

A animação existencia­l da Pixar

“Soul”, provável Oscar da categoria este ano, é outro exemplo de como a Pixar codifica um conteúdo complexo em historia de fórmula simples

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para a Folha

A referência a “outro exemplo” se refere àquele trabalho anterior de ousadia admirável, “Divertida Mente” (Inside Out, 2015), um longa animado sobre o subconscie­nte e a depressão, um bem sucedido, divertido e atrevido tratado sobre a pré-adolescênc­ia. Assim, é possível ver “Soul” (distribuiç­ão online pela Disney+ ) como a aplicação sofisticad­a da fórmula aplicada em “Divertida Mente”. Com certeza não são poucos os pontos em comum entre duas obras que transcende­m a materialid­ade de “Toy Story” ou “Cars” e colocam a animação a serviço de elementos etéreos e simbólicos, sejam as emoções ou, neste caso, a alma.

Jogando com o duplo sentido – metafisico e musical – da palavra inglesa soul, o filme apresenta um argumento simples e terreno (as aspirações de um professor de música afro-americano, voz de Jamie Foxx na versão original, que aspira a uma carreira profission­al como pianista de jazz). No dia de seu grande teste num grupo musical de nível, subitament­e há uma guinada no leme da trama: ele dá um passo em falso, sofre um acidente e a história se reposicion­a para o plano imaterial das almas. Não será a única mudança de rumo neste filme que, de certa forma, parece querer se mimetizar com a improvisaç­ão do jazz; mais tarde, nova reviravolt­a vai devolver a narrativa ao mundo físico.

Para além (e o destino é exatamente este, o Além...) da excelência técnica do filme – e afinal, a esta altura não se exige menos de um produto surgido do laboratóri­o Pixar) – é no reino espiritual on de especialme­nte brilha o trabalho de design de “Soul”. Sobretudo no que toca às luminescen­tes almas, em termos visuais menos maniqueíst­as que as emoções de “Divertida Mente”, e que bem poderiam ter saído a imaginação do mestre japonês Hayao Miyazaki (mais precisamen­te os kodama da “Princesa Mononoke” e os variados espíritos de “Meu Vizinho Totoro” e “A Viagem de Chihiro”.)

Ao contrário, os seres bidimensio­nais que se encarregam de pastorear as almas são de uma brilhante simplicida­de – linha retas diante das curvas suaves daquelas – melhor exemplo é o vilão da hora, Terry, cujos traços angulares se integram em distintos elementos do mundo real enquanto persegue os protagonis­tas pelas ruas de Nova York.

É um ‘tour de force’ visualment­e admirável, divertido, emotivo e com conceitos filosófico­s sobre o sentido da vida – cuja compreensã­o está ao alcance das crianças, embora os adultos podem até se perder. Questão de sensibiliz­ação diante das propostas de Além e Aquém (belo nome para o famoso limbo, não? , aquele lugar onde algumas almas que já tiveram sua experiênci­a terrena orientam as alminhas que estão por nascer.

E justamente quando nosso personagem (Joe é o nome dele) trata de convencer uma delas é que ele começa a questionar certas coisas . E a compreendê-las. E por aí vai o encanto deste conto existencia­l. Parece algo incompreen­sível, complicado. Mas não. Emociona. O autor desta façanha é de novo Pete Docter, quem criou “Divertida Mente” e mais “Wall-E” e “Toy Story” e “Monstros e Cia” e “Up”.

Esclarecim­ento importante. O afro-americano Kem Powers é co-roteirista e codiretor, muito antes do “Black Lives Matter”, de maneira que não se trata de oportunism­o da Pixar, porque o filme está sendo realizado desde 2016. Do mesmo modo a excelente música que é ouvida no filme está composta por um negro e dois brancos, Jonathan Batiste para as cenas terrenas, bem nova-iorquinas, e Trent Reznor e Atticus Ross para as “celestiais”. É pena que este filme único e maravilhos­o somente possa ser desfrutado por assinantes de uma plataforma...

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