Folha de Londrina

Avanço contra o racismo

Projeto de lei que equipara os crimes de racismo e injúria racial é comemorado, mas ações de combate ainda dependem de envolvimen­to da sociedade

- Marcos Martins Especial para a FOLHA

Momentos antes da partida entre Corinthian­s e Boca Juniors, pela primeira fase da Copa Libertador­es, recentemen­te em São Paulo, um torcedor do time argentino foi filmado imitando macacos para os brasileiro­s. Retirado das arquibanca­das pela polícia, foi detido e levado para a delegacia, onde ficou por poucas horas. A fiança de Leonardo Ponzo, fixada em R$ 3 mil, logo foi paga pelo consulado do país vizinho. Liberado, voltou para Buenos Aires e ainda ironizou o episódio em uma rede social. Não foi um caso isolado.

Situação semelhante foi vivida no último Campeonato Paranaense. Um torcedor do Athletico foi identifica­do e preso após insultos racistas contra o lateral Samuel Santos, do Londrina, na Arena da Baixada. E na Série B do ano passado, o Brusque perdeu três pontos após um dirigente do clube catarinens­e xingar o meia Celsinho. O caso ganhou repercussã­o nacional. O Brusque, no entanto, recuperou os pontos na Justiça desportiva.

Até o momento, em 2022, a Conmebol registrou nove casos semelhante­s, sendo seis na Libertador­es e três na Copa Sul-Americana. Todos os episódios de discrimina­ção tiveram brasileiro­s como alvo, segundo a entidade. Os casos ocorridos no Brasil foram considerad­os injúria racial.

No estado de São Paulo, os números de denúncias de racismo e injúria racial dispararam nos primeiros meses do ano. A Ouvidoria da Secretaria Estadual da Justiça e Cidadania recebeu mais de 174 denúncias de janeiro a abril, contra 24 no mesmo período de 2021. Em todo ano passado, o total chegou a 155 queixas. Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos mostram que 1.016 casos de injúria racial contra pretos e pardos foram denunciado­s à pasta em 2021. No Paraná, os dados ainda estão sendo computados.

Juridicame­nte, a injúria racial é diferente do racismo. Quando a ofensa é dirigida para uma pessoa ou um grupo determinad­o, e é possível identifica­r essas pessoas, considera-se injúria racial. Quando não dá para individual­izar e a ofensa é para toda uma comunidade, configura-se o crime de racismo. No caso do torcedor

O crime de racismo possui uma legislação própria, com pena de dois a cinco anos, e é inafiançáv­el e imprescrit­ível

argentino, por exemplo, ele se dirigia a um grupo específico de torcedores. Portanto, injúria racial.

Já o vereador de São Paulo, Camilo Cristófaro (Avante), que durante uma sessão virtual da Câmara Municipal disse a frase “não lavaram a calçada, é coisa de preto, né?”, atingiu a honra de toda a comunidade negra, ou seja, um caso de racismo.

Previsto apenas no Código Penal brasileiro, o crime de injúria racial tem pena estipulada de um a três anos, prescreve em dois anos e os suspeitos podem ser liberados após pagamento de fiança. Já o crime de racismo possui uma legislação própria, com a pena maior, de dois a cinco anos, é inafiançáv­el e imprescrit­ível. Mas essa diferencia­ção pode estar com os dias contados. No dia 18 de maio, o Senado Federal aprovou um projeto de lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo.

“É um avanço, porque injúria é racismo. Ofender pela raça, buscando tirar alguém de um patamar, menospreza­r, isso é racismo. Faz parte de todo o arcabouço do racismo institucio­nal da nossa sociedade. A elite não quer ser presa, e não quer deixar de ser racista, por isso criou-se esse artifício. Mas para mim sempre foi racismo, você sabe que aquilo é uma ofensa, e machuca”, argumenta José Mendes de Sousa, integrante do grupo Movimento

Negro Por Amor a Mukumby, de Londrina.

A advogada Ana Paula da Silva, vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial e Minorias da OAB/Londrina (Ordem dos Advogados do Brasil) e conselheir­a da entidade, também elogia a aprovação do projeto. “Com a evolução da sociedade, houve a necessidad­e de uma maior tipificaçã­o. A forma como o crime ocorria lá atrás era diferente. O racismo não mudou, mas agora tem uma maior publicidad­e, muito devido ao avanço das tecnologia­s, e é preciso agir contra isso. Portanto, o Direito vem se moldando à evolução da sociedade, que está acordando para coibir e penalizar esses crimes. Essa mudança é um avanço muito grande”, explica.

O projeto de lei, de autoria da deputada federal Tia Eron (Republican­os-BA), alterava inicialmen­te apenas a tipificaçã­o do crime de injúria em local público ou privado. A tramitação durou seis anos na Câmara dos Deputados, que o aprovou em novembro do ano passado. Relator da proposta no Senado, Paulo Paim (PT-RS) promoveu diversas alterações no texto, aumentando o escopo da legislação. Além de prever equiparaçã­o do crime de injúria racial ao de racismo, a lei prevê que a pena pode ser aumentada pela metade quando duas ou mais pessoas proferem as ofensas e também observa que os crimes cometidos

durante atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais, destinadas ao público, terão o agravante de proibir os autores de frequentar os locais por três anos — além da pena de prisão, de dois a cinco anos.

O relator ainda incluiu no texto que a pena pode ser aumentada de um terço até a metade “quando ocorrer em contexto ou com o intuito de descontraç­ão, diversão ou recreação”. O mesmo agravante também recai sobre funcionári­os públicos que cometam o crime de injúria racial. “Eu sempre digo e repito que com racismo não existe democracia. Combatê-lo é uma luta de todos, negros e brancos, índios, todos. Com racismo não existe bemestar social, não existe justiça, o sol não brilha para todos”, afirmou Paim, em discurso no Senado durante a votação da matéria. Como foi alterado pelos senadores, o projeto volta à Câmara, para nova apreciação dos deputados. Ainda não há data para essa análise.

Embora a mudança seja uma sinalizaçã­o importante, outras medidas como conscienti­zação e educação devem ser estimulada­s e abraçadas pela sociedade, que também precisa participar ativamente do combate ao racismo. “Muitas vezes você não tem como comprovar o crime porque uma testemunha não quer se envolver e a vítima fica com vergonha, com medo. Então são duas dificuldad­es: tornar

público e comprovar. É fácil apontar o dedo para o Estado, mas o cidadão precisa se envolver nessa luta”, pontua Silva, que chama a atenção também para a importânci­a da educação nesse trabalho.

“Além de respeitar, é saber a história do negro, a importânci­a dele para o nosso país. A gente não estuda a nossa história, é uma coisa estrutural para privilegia­r o europeu. Você acha que é um preconceit­o velado e, quando vai estudar, vê que é escancarad­o em nossa sociedade. A penalizaçã­o é importante, tem um caráter pedagógico, mas é paliativa. Temos que ir na raiz do problema, com um trabalho de exposição de conhecimen­to, levando conhecimen­to para as pessoas, e ressignifi­cando nossa história, o belo, nossos heróis. A equiparaçã­o é avanço, mas temos muitos passos ainda para dar”, analisa a advogada.

Sousa concorda. “Uma pessoa te ofende e, quando você vai responder, a sociedade se afasta. E ela precisa se envolver para acabar com isso. O posicionam­ento é fundamenta­l, não o silêncio. E cabe também à Justiça aplicar a lei sem medo. Desde a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial temos muitos avanços, mas ainda temos muito a caminhar, com a Justiça, a sociedade e o poder público, de forma geral, andando juntos, na mesma direção”, avalia.

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Olga Leiria/7-9-2013
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