Dívida tem cor
A realidade sempre é apresentada sob a perspectiva do grupo hegemônico e como tal, simplificada e forjada de acordo com os seus interesses. A questão racial, invariavelmente, provoca estereótipos que são naturalizados e reproduzidos inconsequentemente a despeito das marcas e cicatrizes que marcam os corpos como açoites de chibatas. Alguns dos mais frequentes: “África é sinônimo de pobreza e miséria”, “negro bem sucedido, ou é pagodeiro, ou jogador de futebol”, “a princesa Isabel libertou os escravos”, “moça escurinha, mas educada”, “moço pretinho, mas nem parece”, “moreninho, mas honesto”, “preto de alma branca”.
Esses chavões populares, que de forma sutil ou nem tanto, dominam os diálogos cotidianos, vêm reforçar a ideia de inferioridade da raça negra e qualquer prova em contrário, é vista ou como exceção, ou pior, um acolhimento ou concessão generosa dos brancos. Essa realidade cruel e naturalizada ao longo de séculos de exploração, opressão e inferiorização, faz com que as crianças negras sintam vergonha dos seus antepassados, reduzindo-os à condição de escravos, submissos e primitivos. De forma inversa, nunca tiveram a oportunidade de conhecer os heróis dos seus ancestrais, muitos grandes engenheiros, médicos, cientistas, escritores ou líderes políticos. Suas origens remetem a grandes civilizações, que prosperaram e deixaram legados fundamentais para a humanidade, como a egípcia, o Império de Axum na atual Etiópia, o de Benin na atual Nigéria; Império de Gana, de Mali, de Nok, de Cuche, Songai, Punt, Zulu, entre muitos outros.
Apesar de todas as evidências históricas, o Brasil sempre preferiu entender o negro como naturalmente inferior e irrecuperável. Diante dessa visão, as elites nacionais propuseram como solução para o futuro do país, o “branqueamento” da população, incentivando a entrada de europeus como forma de melhoramento racial. Muitos deles eram agraciados com terras e incentivos para que se fixassem e pudessem prosperar. Aos negros, em contrapartida, era lhes negada qualquer oportunidade de integração e de ascensão social, a ideia era de aniquilamento ou a sua diluição em corpos brancos.
Em 1933, com a publicação do livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, passou a vigorar uma outra narrativa sobre as relações raciais no Brasil. O autor difundiu a ideia de que a realidade nacional era singular, um país idílico, quase “livre de preconceito racial”, um exemplo para o mundo. Surge daí a teoria da mestiçagem, que enaltecia a ideia de “democracia racial brasileira”, afastada de conflitos ou de preconceitos.
A naturalização do quadro de apartação que vive a população brasileira faz parte do processo de construção histórica incorporado à cultura nacional, que tem na herança escravocrata uma das suas marcas mais profundas e cruéis. Escandalosamente, a exclusão e a pobreza no Brasil têm relação direta com a cor da pele. A ideia de hierarquia, superioridade e elitismo são marcas indeléveis da nossa cultura. A libertação foi oficializada, mas os traços de dominação, exploração e invisibilidade continuam presentes, pois são entendidos por parcelas expressivas da população, como populações inferiores e sem direito a terem direitos.
No entanto, é bom lembrar que grande parte da riqueza nacional produzida ao longo da histórica, foi usurpada por um pequeno grupo às custas de mãos negras exploradas e vilapendiadas sem limites. Como disse brilhantemente o Rapper Emicida: “Não tem uma viga, não tem uma ponte, não tem uma rua que não tenha tido uma mão negra trabalhando”. Mas contraditoriamente, esses mesmos cidadãos e seus descendentes continuam a ser a maioria dos moradores das favelas brasileiras, sem dignidade, oportunidades ou qualquer perspectiva de mudança.
Escandalosamente, a exclusão e a pobreza no Brasil têm relação direta com a cor da pele
Kathleen Cristina Tie Scalassara, mestre em Direito (UEL) e Luís Miguel Luzio-dos-Santos, professor de Socioeconomia (UEL)