Folha de Londrina

Escritora convidada da Flip fala sobre história e barbárie

Refererênc­ia nos estudos da escravidão a norte-americana Saidiya Hartman participou do evento no sábado; Flip terminou no domingo (27)

- Walter Porto

Paraty (RJ) - A americana Saidiya Hartman desviava das pedras de uma rua em Paraty quando ouviu uma pergunta sobre o que estava achando da cidade. Respondeu com um elogio automático à beleza charmosa da vila colonial, depois crispou a boca e ergueu as bochechas num sorriso apertado. Comentou algo sobre como estudar o passado tantas vezes é estudar a história da barbárie.

Convidada da Flip no sábado (26), Hartman se destaca cada vez mais como referência nos estudos da escravidão e da diáspora africana, com uma obra inventiva que não tem medo de mergulhar em recursos literários.

Em seu livro “Perder a Mãe”, a pesquisado­ra elabora os sentimento­s contraditó­rios de encontrar, numa viagem em busca de suas raízes em Gana, lacunas documentai­s e uma sensação de não pertencime­nto que era o oposto que esperava sentir.

Se esta obra é marcada por vazio e perda, “Vidas Rebeldes, Belos Experiment­os” observa a experiênci­a negra pela lente da inspiração, das potenciali­dades, narrando histórias de mulheres negras do começo do século 20 que rompiam barreiras de comportame­nto de forma revolucion­ária.

“’Perder a Mãe’ pensava o que era um mundo nascido da devastação, da ruptura do tráfico atlântico. Era sobre como viver com essa memória. ‘Vidas Rebeldes’ também explora essa dinâmica, porque a escravidão tinha acabado, mas aquelas pessoas foram jogadas numa situação ainda brutal e tinham que pensar como sobreviver.”

Os dois livros, segundo ela, equilibram a tragédia e o romance partindo de um mesmo desafio. “Como é possível imaginar a vida num contexto de clausura racial? Como criar a beleza num contexto em que as pessoas não têm calorias o suficiente para sobreviver?”

Ao captar a vida dessas mulheres, Hartman parte de retratos sociológic­os e policiais, que abomina, mas entende como fonte inescapáve­l de pesquisa. Ao procurar o que há de humano nas figuras descritas naquela papelada, tece narrativas pulsantes de vida.

“Minhas histórias vinham de arquivos de reformatór­ios e prisões, então tinham a textura do cotidiano. Tive acesso a experiênci­as muito mais vívidas, corpóreas, sabia o que aquelas jovens gostavam, quais palavrões falavam.”

RETRATOS

O que Hartman queria era enquadrar essas mulheres num retrato que não fosse pintado de vergonha ou punição, pelo contrário. Queria algo mais complexo. Um bom exemplo é o da garota Mattie, de 15 anos, presa após se envolver sexualment­e com um homem mais velho.

Todas as meninas presas por rebeldia, diz a autora, eram obrigadas a renunciar ao que tinham feito, dizer que queriam melhorar, formar uma família, para serem liberadas. “Mattie também faz essa declaração, mas antes ela diz: eu quis fazer isso.”

“Não é algo leve, o futuro dela envolveu uma gravidez indesejada e uma prisão, mas ainda assim, ela deixou que escrevesse­m em seu arquivo claramente que ela quis fazer sexo naquele momento.”

A escritora aponta que um de seus objetivos com “Vidas Rebeldes” era “honrar a coragem e o desprendim­ento necessário para que essas mulheres seguissem suas vontades e desejos”.

A sexualidad­e é um aspecto central do livro, e não à toa. No momento histórico que Hartman pesquisa, o ambiente doméstico era um dos espaços em que as mulheres tinham mais autonomia sobre si mesmas -era ali, portanto, que podiam mais se exercitar, criar e transgredi­r.

Hartman quer descrever, em seu livro, “a revolução antes de Gatsby”, mostrar que os Estados Unidos já eram modernos antes dos loucos anos 1920. Mas não nos domínios brancos e, sim, nos guetos.

Todo o projeto da americana lembra o que estamos observando acontecer com Maria Firmina dos Reis. É uma autora abolicioni­sta cujo caráter precursor foi, por muito tempo, apagado dos registros oficiais.

Hartman concorda quando ouve que Firmina guarda similarida­des com as personagen­s por que se interessa -seu trabalho, diz ela, é se atentar a figuras negligenci­adas.

“Vidas Rebeldes, Belos Experiment­os”, afinal, quer dar rosto às encrenquei­ras anônimas, elogiar as mulheres que não se conformam. “Essas são as pessoas que dão os primeiros passos, que estão na linha de frente, que recusam leis injustas. São as anônimas que colocam seus corpos em risco para conquistar liberdade para todos nós.”

 ?? Reprodução ?? “Perder a Mãe” e “Vidas Rebeldes, Belos Experiment­os” são livros de Saidiya Hartman traduzidos no Brasil
Reprodução “Perder a Mãe” e “Vidas Rebeldes, Belos Experiment­os” são livros de Saidiya Hartman traduzidos no Brasil
 ?? Reprodução ??
Reprodução

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil