Folha de Londrina

‘O Milagre’, fanatismo e patriarcad­o no streaming

O drama do chileno Sebastián Lelio, disponível na Netflix, coloca em movimento forças reacionári­as como a religião e o machismo

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para a FOLHA

Em mais um esforço que não esconde sua bem vinda ambição de universali­dade temática, o jovem (48) diretor de “Uma Mulher Fantástica” (Oscar de melhor filme internacio­nal em 2018) fez o seguinte em “O Milagre”, mais um passo corajoso da Netflix em direção à inteligênc­ia do espectador: colocou inicialmen­te em tensão, e depois em confronto direto, as forças da crença pessoal e da religião institucio­nalizada com as do pensamento científico, enfatizand­o ao mesmo tempo uma autoridade global talvez mais poderosa: a do patriarcad­o e seus vícios enraizados desde tempos antigos.

A voz da atriz Florence Pugh abre o maravilhos­o prólogo que serve de ponte entre o velho (?) século 19 e este nosso jovem (?) 21, aliás em muitos aspectos ainda bem parecidos. Ela se encarrega de dar prólogo a história, antes de se transforma­r em Lib Wright, enfermeira londrina com uma missão: ir até o interior rural da Irlanda para “observar” uma menina de onze anos. Dizem os membros do comitê que ela não come há 120 dias e ainda mantém boa saúde. Um milagre no sentido estritamen­te religioso da palavra ou uma artimanha familiar e/ou regional para atrair peregrinos e curiosos? O turno da protagonis­ta é de doze horas; para completar o dia, as outras doze para que o cientifici­smo, ou o demo, não vença o jogo da fé. E assim Lib convive com a garota Anna Donnell (a quase debutante Kíla Lord Cassidy), que se recusa a comer qualquer alimento e afirma receber o “maná do céu” com todos os nutrientes necessário­s para sua existência fisiológic­a.

Nada fácil a tarefa da enfermeira que, além de zelar pelo bem-estar de Anna, começa a investigar, como detetive amadora, a origem e

Filme apresenta um estudo hipnótico de luz e sombra, com uma representa­ção de atmosferas vampiresca­s

o método do possível “truque”, convencida de que milagres, se existiram um dia, já não têm lugar no século XIX. Ao longo desta jornada de vigílias, ela conhece um jornalista inglês bisbilhota­ndo o caso (John Burke), que passa de uma presença um tanto irritante a um possível aliado. A resolução do caso e alguns detalhes do passado dos protagonis­tas moldam em grande parte a essência da história, e as ressonânci­as contemporâ­neas ligadas ao fanatismo religioso acabam se dirigindo para um epílogo esperanços­o, mesmo que seja apenas uma exceção. Que confirma várias regras.

Este novo filme rodado na Irlanda pelo diretor chileno do extraordin­ário “Glória” é história estranha e sugestiva sobre fanatismo religioso e os extremos a que ele pode chegar.

E deixa evidente (com as sutilezas possíveis na abordagem do caso) a questão do abuso incestuoso que deu origem ao “milagre da inanição”. Embora o enredo se passe na Irlanda do século 19, o filme transmite a necessária atualidade, algo que o próprio Lelio deixa evidente abrindo e fechando a história com uma espécie de filmagem de bastidores, uma escolha curiosa para este tipo de filme.

Um desconsolo, que o filme não tenha sido lançado no Brasil nas salas e apreciado como merecia, nas velhas e enormes telas de cinema, indo direto para o streaming. A obra ganhou forma pela visão em ‘widescreen’ da diretora de fotografia e iluminação da australian­a Ari Wegner (“Power of the Dog/O Ataque dos Cães”, “Lady Macbeth”). O que ela

obtém é um enquadrame­nto pictórico com mínimos detalhes e criteriosa seleção de espaços e fundos.

Um estudo hipnótico de luz e sombra, com técnicas de claro-escuro dignas do melhor Caravaggio e uma representa­ção de atmosferas vampiresca­s e misteriosa­s. A luz parece querer escapar das molduras do quadro, dando uma sensação carregada de presságios sombrios, em busca de fantasmas desse e de outros mundos. E esta alquimia meio onírica combina em unísso banda sonora perturbado­ra do músico eletrônico Mathew Herbert.

Sons tribais, primitivos, com raízes espirituai­s. A trilha tira partido de sonoridade­s perturbado­ras, minimalist­as, e de notas agudas que colocam a dúvida à frente dos desígnios da fé.

Uma pena que o filme não tenha sido lançado no Brasil nas salas de cinema”

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Divulgação

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