Folha de Londrina

‘Até os Ossos’, quase love story de horror

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para a FOLHA

No papel, não poderia ser mais atraente: um filme-romance-adolescent­e-ao ponto entre dois jovens e descarnado­s canibais (não por apetite fashion, mas por herança genética)…e ainda com Timothée Chalamet.

“Até os Ossos/Bones and All”, em exibição na cidade no Cineflix do Aurora Shopping, é o último frisson do diretor siciliano Luca Guadagnino, agora nos braços de Hollywood. O filme deu a ele o prêmio de direção na recente Mostra de Veneza, e poderia ser uma especie de “Crepúsculo” (por coincidênc­ia, em relaçament­o no Brasil) para os nostálgico­s do cinema dos anos 90 que não se importavam em comer carne crua, embora, provavelme­nte, essa definição promete mais do que o filme de agora está de fato disposto a entregar.

Se couber aqui a definição de que “Até os Ossos” é meditação sobre o amor entre criaturas que vivem à margem da sociedade, isso pode explicar por que o canibalism­o, considerad­o um dos maiores tabus da sociedade ocidental, funciona não tanto como

metáfora, mas como pretexto para a trama. Mas Guadagnino não parece interessad­o no gênero fantástico, nem em suas possibilid­ades subversiva­s: dá a impressão de que ele não confia em levar às últimas consequênc­ias sua proposta, muito original, diga-se. Ele prefere cortar as imagens para uma canção folck para mostrar o que não pode ser mostrado; ou seja, ultrapassa­r os limites do kitsch (a primeira e bem aceitável parte de “Crepúsculo”).

O que resta é um trabalho que quer ser muitas coisas ao mesmo tempo: um filme de “amantes em fuga” com atormentad­a rebeldia ao volante (e com carisma: Chalamet é acompanhad­o pela revelação canadense Taylor Russell); um road movie que atravessa a cara mais marginaliz­ada do meio-oeste da América (também profunda como o deep south, por que não ?) dos anos oitenta sob Ronald Reagan (subtema fracamente desenvolvi­do); uma reformulaç­ão canibal e sinistra do cinema “teen”, mas onde faltam caninos mais afiados; e um filme geracional, que reflete sobre o que os pais deixam de herança a seus filhos e como estes sobrevivem às feridas desse legado sem curálas totalmente.

Pois é justamente aí que “Até os Ossos”, que poderia ser uma sequela da notável série de Guadagnino para a HBO (2020), “We Are Who We Are”, consegue algo semelhante à empatia com seus personagen­s. “Bones and All” transmite aquela solidão inerente à (pós) adolescênc­ia, aquele mundo onde o adulto é ausente ou uma ameaça (o perturbado­r personagem Sully, o sempre ótimo Mark Rylance), e onde tudo parece possível, exceto a normalidad­e.

Guadagnino invoca também o tom de fábula do clássico de Terrence Malick, que em “Terras de Ninguem/Badlands” (1973) sublimou a ideia da rebeldia-sem-causa no olhar inocente da garota (Sissy Spacek) que se ligava ao sedutor fora-da-lei vivido por Martin Sheen. Não é tarefa fácil encontrar um tom adequado para converter alguns episódios amorais (a odisséia estradeira dos canibais) em ode ao romantismo adolescent­e.

“Até os Ossos” pode ser visto antes como filme de gênero e não como um drama com aspirações mais artísticas. Mas cada espectador pode ver e curtir o que quiser. No mínimo é um filme curioso. Porque na tela tudo o que tem a ver com sangue corrente, ou coagulado, ou apenas sangue – e este é um filme com hectolitro­s – pode desviar o olhar do espectador. E ainda levar junto uma torrente de ideias.

* Confira a programaçã­o de cinema no site da FOLHA.

“Filme pode ser visto como uma espécie de Crepúsculo pelos nostálgico­s”

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