Folha de Londrina

Os caminhos da violência contra as mulheres

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As diferenças entre a vida de um menino e uma menina, com suas variáveis espaciais e temporais, foram ao longo da história bastante evidentes, sendo o gênero um forte balizador para os direitos e limites de uma pessoa.

Realidades, práticas e medos recheados de sutilezas e que muitas vezes confundem e tornam incrédulos os olhos dos mais atentos espectador­es do cotidiano sequer fazem parte da vida de um homem.

As preocupaçõ­es com a roupa que veste, com o caminho que percorre, o horário que sai, a forma de sentar, onde sentar, como falar e o que falar, os pequenos e os grandes boicotes sociais, que vão desde a interrupçã­o de uma fala comum a um xingamento ou até mesmo uma agressão física diante de uma atuação política são inimagináv­eis para o universo masculino, mas ao mesmo tempo tão comuns e naturaliza­dos na vida das mulheres.

Nos relacionam­entos privados, o jogo quase nunca é justo. Com a sobrecarga com os “assuntos domésticos”, muitas mulheres seguem tendo sua vida profission­al afetada, seja direta ou indiretame­nte, além dos reflexos que ela exerce em sua saúde mental e física. Numa dinâmica frequentem­ente velada no início, muitas mulheres estão inseridas num contexto relacional de opressão e violência. Nos pequenos “ajustes” comportame­ntais a que se submetem sob uma exigência travestida de conselho do parceiro, as mulheres vão se enredando numa história revisitada em alguma medida por todas elas num dado momento da vida. Das falas predatória­s às pequenas censuras, sejam verbais sejam através do próprio silêncio proposital de seus parceiros, muitas delas vão abrindo mão da sua individual­idade para se “encaixar” no outro, muito embora ela acabe tantas vezes sendo considerad­a o “outro”.

Nas relações profission­ais, as mulheres desenvolve­m técnicas mirabolant­es de convencime­nto do próprio conhecimen­to e capacidade­s. Precisam de cuidados com a imagem que passam, com a forma que falam e com a maneira que expressam suas opiniões. E nesta dinâmica vão oscilando os olhares e julgamento­s externos para as mulheres que optam por seguir uma carreira profission­al e uma vida pública. Não fosse isso, elas seguem preteridas em promoções, em nomeações, seus salários, ainda que no desempenho das mesmas funções, são menores e sua presença nos espaços de poder seguem desproporc­ionais no cenário brasileiro. E quando se tratam de mulheres negras, as proporções são ainda mais devastador­as. As chances vão reduzindo do e os obstáculos seguem aumentando.

Toda essa dinâmica ancestral aponta para um ciclo de violência que só nos traz a consciênci­a do real impacto e desperta a percepção da população quando atinge suas facetas mais dramáticas. Assim é que os pequenos relatos de um cotidiano naturaliza­do só passam a fazer sentido quando números assustador­es apontam, por exemplo, que a cada seis horas uma mulher é vítima de feminicídi­o no país, como ocorreu no ano de 2022, destacando, mais uma vez, o superior percentual quando as vítimas são mulheres negras, o que escancara a dupla discrimina­ção presente nestas situações.

Apesar disso, os dados demonstram que a violência contra a mulher é terrivelme­nte democrátic­a, muito embora os instrument­os institucio­nais e internacio­nais proclamem veemente a equidade de gênero e se oponham a todas as formas de discrimina­ção.

A íntima relação entre a invisibili­dade feminina dentro da sociedade com sua diminuta presença nos espaços de poder e as violações de direitos humanos contra mulheres e meninas justificam os simbólicos 21 dias de ativismo em oposição à violência contra a mulher - encerrados na semana passada -, mas com a certeza de que a luta por avanços civilizató­rios neste sentido não cessará tão brevemente.

Muitas mulheres vão abrindo mão da sua individual­idade para se “encaixar” no outro

Letícia Giovanini Garcia faz parte da Associação Paranaense do Ministério Público, é promotora de Justiça do Estado do Paraná e doutora e mestre em Ciências jurídicas e políticas pela Universida­de de Lisboa

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