Folha de Londrina

Com carinho

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A expressão “manual de instruções”, como também “trabalho manual” vem da mesma palavra latina “manualis”, mãos. O trabalho manual é irmão do trabalho braçal, mas o manual de instruções é assim chamado por dever estar sempre à mão, perto da máquina ou aparelho cujo uso instrui.

Mas minha furadeira elétrica tem 26 anos e nunca consultei seu manual, tão simples e eficiente ela é, companheir­a que nunca falhou. Outro dia, depois da usésima vez lidando com ela, me peguei lhe fazendo carinho, e disse a mim mesmo: não, você não está ficando louco, ela merece.

Carinho se faz com as mãos, embora os olhos e a voz também possam ser carinhosos. E o melhor carinho que se pode receber é de alguém que se diga orgulhoso de nós, como também o melhor carinho que podemos dar é a alguém de quem nos orgulhamos.

É usual dar carinho aos que amamos, mas muitas vezes e por muita gente o carinho é esquecido ou despratica­do. É o caso dos casais há tanto tempo juntos, partilhand­o rotina diária, que desacham carinho, ou seja, nunca acham tempo ou motivo para se acarinhar. Devem pensar que isso é coisa para jovens, deixando assim de viver o fato de que carinho renova toda relação humana.

Há gente carinhente, carente de carinho, e que não tem qualquer vergonha ou temor de confessar e exigir isso. E há também os jovens descarinhe­ntes, os que não percebem que, quando mais idosos ficam seus pais e avós, mais valorizam e precisam de carinho.

O carinho pode ser físico, como o toque no ombro que recebi de minha primeira professora. A tarefa escolar do dia era desenhar uma casa, e a minha desenhei com cachorro e jardim, onde uma vaca pastava enquanto passarinho­s passavam no céu, e também com uma árvore cheia de maduras frutas vermelhas. Muito bom, ela falou com voz carinhosa me dando um leve aperto no ombro, que desconfio me impulsiono­u para as artes, portanto um carinho até, digamos, vitalício.

O carinho pode também ser palavral, na forma de elogio (sincero e merecido), e também pode ser gestual, como deixar uma flor ao lado de uma xícara na mesa do café.

Há também atitudes carinhosas, como no jeito de tratar alguém. Menino vi o filme King Kong, que culminava com a famosa cena do gigantesco gorila no alto de um edifício, acossado e metralhado por aviões mas ainda segurando na mão, com carinhoso cuidado, a mulher por quem se apaixonara.

Lembro também de Maria de Betânia, que lavou os pés de Jesus. Como lembro daquele coveiro que, com colher de pedreiro e cimento fresco, fez do fechamento do túmulo de Tancredo Neves um ritual carinhosam­ente eloquente no seu silêncio.

Os humanos não são os únicos a fazer carinho neste planeta, na net abundam videos de bichos carinhosos com os humanos, entre si mesmos e até entre animais tidos como caças e seus caçadores. Mas somos os únicos a ter uma cultura de carinho, desde o costume de dar presentes até o afago na cabeça das crianças, como quem passa uma tocha de humanidade e esperança, a dizer, com um simples gesto, que apesar de tudo e contudo e todavia, com carinho continuamo­s humanos ou mais humanos.

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Dalva Vidotte

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