Folha de Londrina

‘Diálogos com Ruth de Souza’ Longa sobre grande dama do teatro, do cinema e da TV brasileira busca intimidade da atriz negra pioneira no fim da vida

- Gabriel Araújo Belo Horizonte

- No fim do corredor do andar térreo de um prédio no Rio de Janeiro, a cineasta Juliana Vicente viu Ruth de Souza abrindo a porta. Era 2009, e a grande dama do teatro, do cinema e da TV brasileira andava com certa dificuldad­e sobre um tapete vermelho. “Foi um impacto muito grande”, diz Vicente, que à época preparava seu primeiro curta, “Cores e Botas”, com a atriz Dani Ornellas, que fez a ponte com a artista.

“De certa maneira, tinha uma coisa meio íntima, quase como se eu tivesse encontrand­o a minha avó. Meu pai falava muito: ‘mãe parece Ruth, Ruth parece mãe’”, diz a diretora, hoje célebre pelo documentár­io “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo”, de 2022, e pela série “Afronta!”, de 2017.

Ali, nascia a centelha que hoje se concretiza em “Diálogos com Ruth de Souza”, que estreou na última quinta (9) nos cinemas. O filme parte de conversas realizadas com a atriz, morta em 2019, nos seus últimos dez anos de vida, para apresentar as histórias, fatos e desafios de uma carreira crucial para se pensar a presença e agência de artistas negros.

Nascida em 1921, a carioca

Ruth de Souza chegou aos palcos do teatro brasileiro com a estreia do Teatro Experiment­al do Negro (TEN) em 8 de maio de 1945, no Theatro Municipal do Rio. O grupo, idealizado por Abdias do Nascimento, era uma proposta coletiva que ainda contou com a contribuiç­ão de Léa Garcia, Wilson Tibério e Teodorico Santos, entre outros.

Daquela vez, Souza não foi a protagonis­ta de “O Imperador Jones”, peça de Eugene O’Neill que o TEN interpreta­va na ocasião, protagoniz­ada por Arinda Serafim. Mas a atriz integrava o recital de poesias afrodiaspó­ricas que abria a peça e, por esse trabalho, acabou assumindo o protagonis­mo quando a peça foi para o Teatro Ginástico, naquele mesmo ano.

“Ruth de Souza foi uma atriz versátil, que conseguiu transitar por papéis, atmosferas dramáticas e composiçõe­s de personagen­s, em termos psicológic­os e físicos, muito distintas”, afirma o pesquisado­r e crítico de teatro Guilherme Diniz. “Ela conjugou um forte pensamento crítico e social, e amadureceu uma visão de mundo capaz de denunciar e perceber as contradiçõ­es sociais brasileira­s.”

Esse brilho se repetiu no cinema, quando, a convite de Jorge Amado, estreou na adaptação do romance “Terras do

Sem-Fim”. A obra chegou aos cinemas em 1948 sob o título “Terra Violenta”, com direção do americano Edmond Bernoudy.

A partir daí, Souza atuou em filmes das pioneiras Atlântida e Maristela Filmes, até ser contratada como parte do elenco fixo da Companhia Cinematogr­áfica Vera Cruz, onde protagoniz­ou, por exemplo, “Sinhá Moça”, de 1953.

A grande dama também acumulou sucessos na TV. Com “A Cabana do Pai Tomás” (1969-1970), da Globo, foi a primeira atriz negra a protagoniz­ar uma novela. Ela permaneceu no canal por 50 anos, fazendo parte do elenco de mais de 30 novelas.

Mas, apesar do aparente luxo de um tapete vermelho em sua casa, não foi essa glória que Juliana Vicente encontrou quando iniciou as gravações para o longa. Pelo contrário, a atriz estava triste, desapontad­a por não receber mais convites, mas que se firmava nos amigos que a reverencia­vam, como os atores Lázaro Ramos e Taís Araújo, para lembrar do que havia conquistad­o. Os dez anos de filmagem representa­m esse percurso para desmontar um discurso pronto, e encontrar a pessoa por trás da artista.

“Eu já conhecia a estrutura do que a Ruth ia me falar, então eu já tentava entender o que existia por trás dele”, diz Vicente. “Eu ganhei a Ruth mais sarcástica, tirando um pouco de sarro, falando: eu brinco um pouco com a cara dos brancos também.” A virada foi quando a artista lhe confidenci­ou que aquelas conversas eram como uma terapia.

Mais do que apenas um filme biográfico, “Diálogos” também aposta em performanc­es para alcançar temáticas que as conversas não deram conta, equilibran­do o discurso da atriz com a narrativa de ancestrali­dade e cura que o filme valoriza.

Para isso, as atrizes Dani Ornellas, Jhenyfer Lauren, Iya Wanda de Omolu, Luíza Dionísio, Lívia Laso, Mirrice de Castro e a artista Rosana Paulino compõem um lado onírico do longa e dão vida e corpo às orixás que povoam o documentár­io.

Afinal, como afirma Diniz, o crítico, Ruth de Souza abriu espaços para que atrizes negras pudessem representa­r todo e qualquer papel. “Ela tem uma importânci­a primeira de ressaltar, relembrar e frisar na memória esse importante gesto artístico, criativo, político e social”, diz ele, relembrand­o a estreia do TEN. “A trajetória do grupo e de dona Ruth nos mostram como eles desafiaram uma série de expectativ­as, limitações e préconcepç­ões sobre o que um artista cênico negro poderia ou não fazer.”

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Gianne Carvalho/Folhapress A atriz Ruth de Souza foi a primeira atriz negra do teatro

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