Folha de S.Paulo

As coisas, os outros e os escombros

- CON TARDO CALLIGARIS ccalligari@uol.com.br@ccalligari­s AMANHÃ NA ILUSTRADA: Fernanda Torres

1) OS amigos que encontro, nesta volta de viagem, querem saber do terremoto na Itália. Como foi? Oque pensei e senti? Pois é, o terremoto não me inspirou pensamento­s sobre a fragilidad­e da existência e a força da natureza — ou outro lugarcomum que valha.

Na hora, só tive iniciativa­s práticas. Como já contei, logo no primeiro tremor, juntei numa pasta passaporte­s, bilhetes de avião e carteiras. Nos dias seguintes, me deslocava sempre com esses apetrechos e, de noite, deixava ao lado da cama uma bolsa que continha a tal pasta mais o necessário para que a gente, pulando da cama para a rua, aguentasse o frio e a chuva.

Será que eu me preocupava com nossa mobilidade, ou seja, com a possibilid­ade de irmos embora sem burocracia, em caso de catástrofe? Ou será que me preocupava em termos constantem­ente conosco uma prova de nossa identidade?

2) Na madrugada do primeiro tremor, no dia 20, fiquei acordado até a luz do dia, para não ser surpreendi­do por eventuais tremores de assentamen­to. Passei o tempo olhando para as coisas ao meu redor.

Nos 60 anos em que meus pais mantiveram um apartament­o em Veneza, eles abarrotara­m seu espaço: nada de grande valor ( afinal, o lugar fica desocupado durante boa parte do ano), mas muitos objetos carregados de história familiar, marcados pelas mãos e pelos olhares dos meus pais, avós ou bisavós. De cada objeto que considerei, tentei me contar a história: de onde vinha? De quem fora? Como chegara até lá?

Talvez o livro mais bonito e tocante que li nos últimos meses tenha sido “A Lebre com Olhos de Âmbar”, de Edmund de Waal ( Intrínseca).

É a história de uma família, narrada, por assim dizer, por uma coleção de miniaturas japonesas que passa, ao longo de quase dois séculos ( cheios de fúria e guerras), de mão em mão, de país em país e de um continente a outro.

Sem dúvida, há objetos que são melhores sedimentos da história do que outros. Uma miniatura japonesa, por exemplo, já nasce como vestígio da história de quem a entalhou — às vezes, meses ou anos a fio.

Nos entulhos, as vítimas procuram sua identidade, que ficou nas coisas e nos outros perdidos

Mas, nofundo, qualquer objeto, até um artefato industrial, tenta contar sua história. Qualquer mercadoria pode nos falar do trabalho de quem a produziu e dos desejos dos que a compraram, perderam ou trocaram. Oqueaconte­ce, emgeral, équeagente não se dá o tempo de escutar.

Logo na região devastada pelo terremoto, nos claustros de San Pietro, em Reggio Emilia, está aberta até outubro ( tremores permitindo) a exposição “Gli Oggetti ci Parlano” ( os objetos falam conosco). Uma busca on- line explica a iniciativa e permite ver, emvídeo, partes da mostra: os cidadãos de Reggio foram convidados a emprestar objetos pessoais que tivessem, para eles, uma história significat­iva — a qual eles contam em depoimento­s filmados.

3) Parêntese: já na primeira noite, lembrei- me de uma recomendaç­ão de meu pai, com sua sabedoria de clandestin­o procurado por fascistas e nazistas: “Se você fugir, não volte atrás”. E ele agregava exemplos de resistente­s que fugiram a tempo, mas quiseram voltar, rapidament­e, para pegar algo que tinham esquecido ou mesmo só para olhar sua casa pela última vez — e foram presos.

Confirmand­o o conselho de meu pai, no segundo terremoto, o do dia 29, morreu o padre Martini, em Rovereto; ele voltou para a igreja de Santa Caterina, já periclitan­te desde o dia 20 — só um instante, para recuperar uma imagem santa. Entrou exatamente na hora do tremor das nove da manhã.

4) Passei minha infância brincando e fuçando nos escombros ( de bombardeio­s aéreos, não de terremotos, claro). Imagino que, se minha casa fosse demolida, mesmo se não houvesse vítimas, eu ficaria, mexendo no entulho — mas à procura do quê? De uma jarra de prata que não se amassou além da conta, de uma cerâmica que não quebrou, de um livro que sobreviveu?

É fácil dizer que tanto faz, “deixa para lá: o passado está na gente, na nossa lembrança”. Fácil e umpouco falso: nossa identidade é sempre dispersa aos quatro ventos. Ela está nas pedras, nas coisas e nos outros.

A clínica constata que as vítimas das grandes catástrofe­s, quando erram pelos entulhos, entre corpos e restos, não sabem mais direito quem elas são. O que elas procuram é sua própria identidade, que estava nas coisas, nas pedras e nos outros que se perderam.

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Mariza Dias Costa

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