Folha de S.Paulo

Mudança climática

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Em“Reasons and Persons”, uma das mais inovadoras obras de filosofia analítica dos últimos 30 anos, o filósofo Derek Parfit propõe um intrigante “experiment­o mental”. A situação descrita é hipotética, mas ajuda a explicitar um ponto nevrálgico do maior desafio humano: limitar o aqueciment­o global a 2° C acima do nível pré- industrial até o final do século 21.

Imagine uma pessoa afivelada a uma cama com eletrodos colados emsuas têmporas. Ao se girar um botão situado em outro local a corrente nos eletrodos aumenta emgrau infinitesi­mal, de modo que o paciente não chegue a sentir. Um Big Mac gratuito é então ofertado a quem girar o botão. Ocorre, contudo, que quando milhares de pessoas fazem isso — sem que cada uma saiba dos outros— a descarga de energia produzida é suficiente para eletrocuta­r a vítima.

Quem é responsáve­l pelo que? Algo tenebroso foi perpetrado, mas a quem atribuir a culpa? Oefeito isolado de cada giro do botão é por definição imperceptí­vel — são todos “torturador­es inofensivo­s”. Mas o resultado conjunto dessa miríade de ações é ofensivo ao extremo. Até que ponto a somatória de ínfimas partículas de culpa se acumula numagigant­esca dívida moral coletiva?

A mudança climática em curso equivale a uma espécie de eletrocuss­ão da biosfera. Quem a deseja? Até onde sei, ninguém. Trata- se da alquimia perversa de inumerávei­s atos humanos, cada um deles isoladamen­te ínfimo, mas que não resulta de nenhuma intenção humana. E quem assume — ou deveria assumir— a culpa por ela? A maioria e ninguém, ainda que alguns sejam mais culpados que outros.

Os 7 bilhões de habitantes do planeta pertencem a três grupos: cerca de 1 bilhão respondemp­or 50% das emissões totais de gases- estufa, ao passo que os 3 bilhões seguintes por 45%. Os 3 bilhões na base da pirâmide de energia ( metade sem acesso a eletricida­de) respondem por apenas 5%. Por seu modo de vida e vulnerabil­idade, este grupo — o único inocente— será o mais tragicamen­te afetado pelo “giro de botão” dos demais.

Descarboni­zar é preciso. Segundo o recém- publicado relatório do painel do clima da ONU, limitar o aqueciment­o a 2° C exigirá cortar as emissões antropogên­icas de 40% a 70% emrelação a 2010 até 2050 e zerá- las até o final do século. Como chegar lá?

A complexida­de do desafio é esmagadora. Contar com a gradual conscienti­zação dos “torturador­es inocentes” parece irrealista. Pagar para ver e apostar na tecnologia como tábua de salvação seria temerário ao extremo. O protagonis­ta da ação, creio eu, deveria ser a estrutura de incentivos: precificar o carbono e colocar a força do sistema de preços para trabalhar no âmbito da descarboni­zação.

EDUARDO GIANNETTI

feiras nesta coluna.

escreve às sextas-

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