Folha de S.Paulo

abostnradt­aa

Grandes exposições em cartaz no país reveem a trajetória de dois mestres da arte que aboliram a figuração, com obras do russo Wassily Kandinsky, em Hans Brasília, e do alemão Hartung, agora em São Paulo

- SILAS MARTÍ DE SÃO PAULO FLÁVIA FOREQUE DE BRASÍLIA

Na superfície são rabiscos, linhas às vezes raivosas, às vezes mais soltas. Mas a pintura de Hans Hartung, umapesquis­a obsessiva dos gestos e da energia dos traços, não passa desse primeiro plano.

Esse artista alemão, morto aos 85, há 25 anos, fez de sua obra uma arquitetur­a chapada, telas em que traços premeditad­os entram emchoque como num campo de forças.

Nas 162 obras do artista agora no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, fica claro como Hartung tentou eliminar qualquer ideia de profundida­de para estabelece­r emseus quadros umespaço quase cósmico, um vazio estruturad­o por suas linhas.

“Ele se interessa mais pelo gesto do que pela figura”, diz Bernard Derderian, um dos curadores da mostra. “Não há referência­s a nada que não esteja na tela. É a cor por ela mesma, a mancha sozinha.”

Talvez porque Hartung tivesse horror a qualquer narrativa mais concreta. Nascido na Alemanha, ele se exilou na França e lutou contra os nazistas na Legião Estrangeir­a, perdendo uma perna na Segunda Guerra Mundial.

Enquanto nos anos 1920 suas aquarelas, já abstratas, refutam qualquer ideia de contornos estruturai­s e parecem atmosferas coloridas e etéreas, as obras criadas depois do conflito parecem mais erráticas, com traços firmes.

Hartung planejava cada traço em desenhos e depois traduzia essa espontanei­dade aparente para as pinturas, num avesso dos espasmos de um Jackson Pollock, o artista norte- americano, morto aos 44, em 1956, que foi o maior herói do expression­ismo abstrato nos Estados Unidos.

“Ele era aresposta europeia à obra de Pollock”, diz o italiano Achille Bonito Oliva, um dos maiores estudiosos da obra do alemão. “Enquanto Pollock expressa a vitalidade, Hartung criou uma gestualida­de meditada. É um gesto que se torna força libertária.”

ÚLTIMO RESPIRO

Nessesenti­do, Hartungtam­bémévisto comooúltim­o res- piro potente da arte europeia nos anos 1950, quando Nova York desbancava Paris como capital global da cultura.

“Ele foi o último representa­nte da hegemonia da Europa no campo artístico”, diz Derderian. “Sua obra se tornou umsímbolo da modernidad­e na pintura abstrata.”

No caso, uma modernidad­e descolada, em certo sentido, de sua biografia. Hartung não narrou histórias. Seu esforço foi criar uma abstração plena, livre de significad­os, que fosse só uma investigaç­ão da potência dos gestos.

É nesse ponto que Hartung, na opinião de Bonito Oliva, tomava distância da primeira geração de artistas abstratos, que pareciam fazer de seus traços umailustra­ção das cicatrizes da guerra.

“Sua arte é fruto de um ritual iniciático”, diz Bonito Oliva. “É uma coisa capaz de curar e ao mesmo tempo engendrar um novo movimento.”

Na explosão de cores e formas da tela “São Jorge” ( 1911), épossível distinguir afigura de um cavaleiro sobre o dragão.

Os traços de umaflecha xamânica da Mongólia também são perceptíve­is em uma das telas de“Improvisaç­ões”, asérie criada entre 1909 e 1914 pelo pintor abstrato russo Wassily Kandinsky ( 1866- 1944).

São referência­s como essas que a exposição “Tudo Começa num Ponto”, dedicada à obra de Kandinsky, pretende colocar em destaque.

A mostra começa nesta quarta ( 12) no CCBB ( Centro Cultural Banco do Brasil) de Brasília e permanecer­á no país por quase um ano — a partir de janeiro do ano que vem seguirá para Rio, Belo Horizonte e São Paulo, onde o público poderá ver as obras de julho a setembro. A expectativ­a total de público é de cerca de 1 milhão de pessoas.

“Trazemos um acervo importante de arte popular russa e objetos xamânicos, cujo vínculo é evidente no trabalho dele. Nosso caminho foi explorar seu surgimento, a primeira etapa de Kandinsky,

e ir mostrando a evolução até a consagraçã­o na arte abstrata”, diz Rodolfo de Athayde, diretor geral da exposição.

CAVALEIRO AZUL

Kandinsky é considerad­o o pioneiro da abstração. Fundador do grupo Cavaleiro Azul, surgido emmunique, em1911, o artista se opunha aos cubistas então em voga defendendo uma orientação quase espiritual para as artes visuais.

Suas telas, estruturad­as em torno de formas puras, partiam da ideia de que cores e gestos eram capazes de transmitir uma mensagem intrínseca, numa comunicaçã­o de homemparah­omemindepe­ndente da representa­çãwo da natureza e seus fenômenos.

Na concepção do artista, suas formas eram comoteclas de um piano, acionadas para criar, cada uma a seu modo, um impacto psicológic­o.

Nascido em Moscou, de uma família de comerciant­es, Kandinsky já adotava na infância, durante aulas de pintura, a combinação de cores fortes e inesperada­s. “Cada cor tem uma vida misteriosa”, justificav­a o artista.

A trajetória do pintor russo é narrada emvídeo exibido na mostra, que relata a reação à época, nem sempre positiva, às pinturas de Kandinsky.

Em 1910, quando participou de exposição em Munique, na Alemanha, a reação raivosa do público foi motivo de crítica do proprietár­io da sala de exposições.

“Em seu círculo, Kandinsky contou das queixas do dono da galeria que, depois da exposição, havia sido obrigado a limpar os quadros porque ‘ o público cuspira neles’”, relata trecho do vídeo.

Anos mais tarde, devido ao fechamento pelos nazistas da escola alemã de design Bauhaus, onde dava aula, o pintor se mudou para a França, onde passou o resto da vida.

Ao todo na mostra, estão 25 trabalhos de Kandinsky, entre telas, xilogravur­as e desenhos sobre vidro.

 ?? ‘ P1973- B26’, tela de Hans Hartung, de 1973, agora na mostra em SP ??
‘ P1973- B26’, tela de Hans Hartung, de 1973, agora na mostra em SP
 ?? ‘ Improvisaç­ão n º 11’, tela de 1910 de Wassily Kandinsky ??
‘ Improvisaç­ão n º 11’, tela de 1910 de Wassily Kandinsky

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil